sexta-feira, 26 de abril de 2024

Um Presidente à beira do abismo

Marcelo Rebelo de Sousa tornou-se um problema para as instituições. Ele que deveria ser o seu garante parece apostado em dinamitá-las. As suas palavras no jantar com os jornalistas estrangeiros são um exemplo disso. Se as considerações sobre os primeiros-ministros não passam de um fait-divers inócuo, apesar de desagradável, as meditações sobre o passado colonial a que se entregou em voz alta foram de grande gravidade. Não porque representem um traição, mas porque assuntos de grande delicadeza política não são tratados na praça pública. Marcelo Rebelo de Sousa não sabia que estava a dar combustível à retórica pseudo-patriótica da extrema-direita? Um Presidente à beira do abismo.

quarta-feira, 24 de abril de 2024

A cultura populista em Portugal

O populismo parece disseminado por eleitores de todo o espectro partidário. É o que mostra o projecto de investigação 50 anos de Democracia em Portugal: Aspirações e Práticas Democráticas - Continuidades e Mudanças Geracionais, do ISCSP/CAPP (aqui e aqui). Generalizou-se uma percepção da realidade política extremamente perigosa. Essa percepção conduz a atitudes de rejeição do sistema político e a um antielitismo feroz, duas atitudes cavalgadas pela extrema-direita. Nessa rejeição, manifesta-se uma velha cultura que teve o seu fundamento na Estado Novo, mas que, depois da abalada pela transição à democracia, foi, paulatinamente reganhando fôlego. 

Quase 87% dos portugueses pensam que os políticos e os partidos defendem os seus privilégios. Cerca de 82% julga que os políticos são desonestos e corruptos e mais de 81% afirmam que os partidos falam muito, mas fazem muito pouco. Se quisermos falar de uma vitória póstuma do salazarismo, estas percepções sobre os partidos político e os políticos democráticos são um prova elucidativa. É uma visão negra dos instrumentos democráticos. Além de negra, ela é falsa e esta falsificação resulta de vários factores. 

Em primeiro lugar, provém de uma generalização abusiva em que se passa de casos específicos para uma generalização alimentada pelo furor da comunicação social. Em segundo lugar, origina-se numa inveja perante aqueles que ocupam os cargos de poder e são pessoas iguais a todas as outras, pessoas que não têm uma aura de sacralidade que as retira dos olhares públicos, como acontecia com os políticos da ditadura, protegidos pela censura e pela polícia política. Em terceiro lugar, pela cultura antidemocrática e antipartidária proveniente, como se disse, do Estado Novo e fomentada por aqueles que nunca se resignaram à liberdade.

Contudo os dados mais preocupantes são dados por dois elementos do estudo. Quase 85% dos portugueses acham que os políticos devem seguir o povo e quase 70% defendem que as decisões importantes deveriam ser tomadas por cidadãos (através de referendos). A cerne da democracia liberal é a representatividade. E ela é representativa não apenas por uma questão prática da impossibilidade de envolver todos os cidadãos na trabalho legislativo e executivo, mas, fundamentalmente, para evitar que a irracionalidade emotiva e a exploração demagógica arrastem a comunidade para a tomada de posições irracionais e odiosas.

As democracias liberais são demo-aristocracias, nas quais as elites políticas (a aristocracia das democracias modernas) são abertas, podendo qualquer um fazer carreira política. Qualquer um fazer parte das elites políticas, segundo o seu talento, é um dos traços democráticos do sistema. O outro é a escolha das elites governativas. Esta depende do voto popular. As democracias liberais existem não apenas para evitar o conflito armado entre elites rivais, mas também para evitar que os políticos sigam o povo, quando este é movido pelos instintos cegos e por paixões irracionais. Que os portugueses não o entendam é um dado muito preocupante.

terça-feira, 23 de abril de 2024

O caso Sebastião Bugalho

É possível que Sebastião Bugalho venha a ser um talentoso político e um futuro líder da direita democrática. É possível que tenha capacidade de penetrar no eleitorado de direita que, nos últimos tempos, se tem inclinado para o Chega. São possibilidades que o futuro poderá ou não confirmar, mas há uma coisa que é clara. Sebastião Bugalho fez até agora parte de uma rede de comentadores - em aparência independentes - que construíram uma narrativa da realidade nada independente. Pelo contrário, uma narrativa enviesada com o único foco de fazer a direita chegar ao poder. Se fosse preciso apresentar provas, a cooptação de Sebastião Bugalho para cabeça de lista da AD para as eleições europeias bastava. O caso Sebastião Bugalho é um sintoma do enviesamento da comunicação social portuguesa que está a perverter o jogo democrático.

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Política, percepções e factos

A política, muitas vezes, faz-se mais de percepções do que de factos. Uma das percepções que a direita tem passado e com um sucesso razoável é a incapacidade de Portugal crescer. As direitas radicais propagam que Portugal é mesmo um país em retrocesso com o 25 de Abril. O que mostram os factos? Segundo o Maddison Project, que reúne informação de longo prazo até 2018, Portugal foi o quatro país em que os rendimentos médios, na Europa Ocidental, mais cresceram desde 1974. Também os dados do World Economic Outlook do FMI, com informação do PIB per capita em paridades de poder de compra, desde 1980 até ao presente, mostram que Portugal está entre os cinco países que mais cresceram nesse período (ver aqui). Os factos estão longe das narrativas que as direitas, de modo diferenciado, põem a circular. Ora do ponto de vista político, é mais importante a percepção do que os factos. Mesmo que a nossa economia seja das que tem, desde 1974, um dos melhores desempenhos na Europa Ocidental, não é isso que está na mente de muitas pessoas, senão da maioria. Os resultados das últimas eleições mostraram, se fosse necessário mostrar, que as percepções em política tem mais impacto eleitoral do que os factos.

domingo, 21 de abril de 2024

CDS, equívoco e desejo frustrado

Um equívoco e um desejo em vias de frustração. Depois de renascer, Nuno Melo quer o CDS a reconquistar a direita que perdeu, assim titula o Público a notícia sobre o congresso do CDS. Um equívoco porque o CDS não renasceu. O PSD tirou-o do jazigo e exibe-o como D. Pedro exibiu Inês, como rainha morta, mas com mais cálculo de interesses e menos, muito menos, amor. Quanto ao desejo do líder do CDS de reconquistar a direita perdida não passa de um desejo cujo objecto não está disponível para responder. 

O CDS foi um partido em que entre os seus dirigentes e quadros e os seus eleitores sempre houve uma diferença significativa. Por norma, os dirigentes - muitos deles notáveis - e quadros cultivaram e interiorizaram um apreço pela democracia liberal, mas o povo que votava CDS estava longe de se rever nesse apreço. Encontrou em André Ventura o homem forte - é assim que ele se imagina e é assim que os devotos o imaginam, se isso corresponde à realidade é outra coisa - que andava à procura. O mercado que o CDS quer reocupar está ocupado e com a clientela satisfeita.

sábado, 20 de abril de 2024

A direita antes e depois do 25 de Abril

Vi um excerto de uma entrevista a Miguel Caetano, um dos filhos de Marcello Caetano, o Presidente do Conselho deposto em 25 de Abril. Miguel Caetano diz claramente que o pai não era um democrata. A transição à democracia que poderia ter sido iniciada com a chamada Primavera marcelista não existiu não apenas por causa da guerra colonial, mas também porque a direita portuguesa, e Marcello Caetano era um símbolo dessa direita, não tinha propensão democrática. Não a incomodava as perseguições políticas, a existência de censura e de uma polícia política, a ausência de liberdades civis e políticas. 

O 25 de Abril tornou possível a emergência de uma direita democrática, preocupada com as liberdades. Perturbante, porém, é o facto dessa direita, agora no governo, estar em refluxo e a velha direita autoritária ter encontrado um modo de expressão e de propaganda constante, com uma postura, porém, muito diferente da postura dos dois Presidentes do Conselho da ditadura, Salazar e Caetano. Nenhum deles era um populista. Pelo contrário, tinham a velha gravitas dos antigos homens de Estado, enquanto o actual condottiero dessa direita não democrática é o contrário de tudo isso, uma figura burlesca que parece representar não uma tragédia, mas uma farsa.

sexta-feira, 19 de abril de 2024

O Livre e a escolha de candidatos.

O Livre tem um método de escolher as candidaturas que parece merecer muitos aplausos. Organiza umas eleições internas, denominadas vulgarmente por primárias, nas quais podem participar militantes e simpatizantes. As coisas, todavia, não correm sempre bem. O primeiro caso foi a escolha de Joacine Katar-Moreira para encabeçar a lista de candidatos ao parlamento pelo círculo de Lisboa. Foi eleita, mas logo entrou em ruptura com o partido e deixou, durante a legislatura, o Livre sem representação parlamentar. Agora, parece ter havido uma estranha votação num dos candidatos à liderança da lista do Livre ao parlamento Europeu. 

São demasiados casos para validar este tipo de escolha das candidaturas. Sabe-se, perfeitamente, que pode haver uma espécie de sindicato de votos a favor de um candidato, pode haver penetração de elementos estranhos aos ideais do partido para escolher um candidato problemático, etc. A democracia é feita de partidos. Estes devem escolher os seus candidatos de acordo com os objectivos do partido no momento eleitoral. Se se pretendem abrir aos simpatizantes, então devem ter regras com algum rigor para que essa abertura não acabe por jogar contra o próprio partido. Não temos a tradição americana de primárias e a falta dessa tradição é uma razão aceitável para continuar a não a utilizar.

quinta-feira, 18 de abril de 2024

A democracia e os portugueses

Num estudo agora publicado do ISCSP, 87% dos portugueses afirmam preferir a democracia representativa. O resultado parece, à primeira vista, bom. Contudo as alternativas também não obtiveram um mau score. Um governo de especialistas seria bem recebido por 70% e um governo autoritário de um homem forte, sem recurso a eleições, por 47%. Isto significa que a democracia é preferível, mas, se ela acabar, uma parte substancial dos portugueses apenas encolherá os ombros como se nada se passasse. Uma nota interessante é que 55% dos que veriam com bons olhos um governo autoritário não têm qualquer interesse pela política. Isto é um retrato da fragilidade da democracia portuguesa. A conjugação de uma população que aceita a democracia, mas que não lhe é fiel, com a despolitização de parte significativa dessa população são o caldo cultural que alimenta os sonhos autoritários da extrema-direita e dos candidatos a salvadores da pátria.

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Uma bravata ambiental, na Alemanha

O ministro alemão dos Transportes, um liberal, ameaçou proibir a circulação automóvel ao fim-de-semana. A causa reside no facto de a Alemanha não estar a conseguir cumprir as metas ambientais a que se comprometeu. Esta quase bravata é sintoma de um problema muito mais fundo. É o nosso estilo de vida que é problemático para o ambiente. Ora, nem os eleitores nem os eleitos estão interessados em enfrentar a situação de um modo consistente. Vamos assistir a ameaças deste género ou, então, à escolha pelos eleitores de forças políticas que neguem a responsabilidade humana - do estilo de vida da espécie humana - na degradação climática. Neste momento, pensar que os seres humanos se vão preocupar em preservar a casa comum pertence ao reino da fantasia. Preferem a negação da realidade à mudança que lhes é exigida. Os políticos ou se adaptam aos interesses dos eleitores, mesmo que perigosos para a possibilidade de haver um futuro para a espécie, ou serão trocados por outros que satisfaçam os desejos de quem vota. 

terça-feira, 16 de abril de 2024

O fim da vergonha e a falta de memória

Segundo Vicente Valentim, cientistas política na Universidade de Oxford, o crescimento da direita radical deve-se ao fim da vergonha (aqui). Havia nas sociedades europeias uma corrente desta direita mais radical, mas que se encontrava recalcada pela censura social. As ideias de extrema-direita tinham sido responsáveis pela segunda guerra mundial e essa visão política do mundo estava associada a factos traumáticos, os quais provocaram uma rejeição geral. Em Portugal, não participante nessa guerra, a direita radical estava conectada ao salazarismo e a uma ditadura que durou 48 anos.

O fenómeno real do fim da vergonha está conectado com um outro, o da erosão da memória colectiva. Os defensores de regimes autoritários - é isso que a direita radical pretende impor, em Portugal sob a elusiva designação de IV República - e totalitários perdem a vergonha porque as sociedades perderam a memória dos regimes que essa direita promoveu. Um dos equívocos que a perda da memória gera é o de olhar para essa direita como mais um concorrente ao poder num regime democrático-liberal. Ora, alguma memória permitiria perceber que essas forças apenas usam as liberdades para lhes acabar com elas. É possível que, paulatinamente, as democracias europeias estejam a caminhar para o seu fim. A memória não é eterna.

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Uma triste realidade

A vexata quaestio da descida do IRS tem pelo menos o mérito de nos dar uma imagem daquilo que os políticos pensam dos eleitores. Os votantes portugueses não escolhem projectos para o país, mas deixam-se comprar por uns euros a menos nos impostos. Esta triste realidade diz alguma coisa dos portugueses, por certo, mas também diz muito da qualidade das nossas elites políticas, da inconsistência da sua visão do mundo, da comunidade e da própria prática política. Não se trata de uma virtualidade do regime democrático, pois este também tem produzido lideranças consistentes, mas do paulatino abandono da política por quem poderia ter uma abordagem diferente e consistente do país. E aqui os portugueses têm responsabilidades. Por um ódio contumaz aos políticos, um ódio gerado no autoritarismo do Estado Novo, foram fechando portas e janelas por onde pessoas mais qualificadas e capazes poderiam entrar. O populismo cheganista não caiu dos céus, ele veio da terra e é a expressão da mediocridade que a cultura política de parte dos portugueses gerou ao longo de décadas.

domingo, 14 de abril de 2024

O abismo na ordem internacional

O ataque do Irão a Israel veio lançar mais confusão na situação internacional do que aquela que já havia. O alargamento do conflito no Médio-Oriente e a guerra na Ucrânia tornam a situação muito preocupante. A situação geopolítica está à beira do abismo e parece não faltar gente decidida a dar uma ajuda eficaz para que ela caia nesse abismo, que será sempre um abismo de violência, destruição e morte, onde existe um forte possibilidade de uma visão liberal da ordem internacional e as próprias democracias liberais sucumbirem por longo tempo.

sábado, 13 de abril de 2024

A falta de tracção da esquerda

Há dias António Costa terá dito faltou ao PS e ao PSD tracção, o que permitiu o crescimento do Chega. A frase foi repetida, por vezes, de forma irónica. Talvez o ex-primeiro-ministro quisesse dizer poder de atracção. Lembrei-me disto, ontem, ao ver à entrada do hospital local - aquela por onde entram e saem os profissionais hospitalares - uma delegação do PCP, com bandeirinhas do partido, a distribuir panfletos. Lembrei-me porque aquela espectáculo completamente anacrónico mostra que, na esquerda, não é apenas o PS que sofre de incapacidade de tracção (no sentido de arrastar os eleitores para si). Toda a esquerda se tornou, de um momento para o outro, anacrónica. As suas causas deixaram de mobilizar as novas gerações. São dirigidas à memória e não à expectativa e à esperança. Ou a esquerda percebe isto rapidamente, ou então está condenada, a curto prazo, à irrelevância.

sexta-feira, 12 de abril de 2024

E se a política fiscal falhar?

O actual governo propõe-se baixar impostos, aumentar a despesa e respeitar as apertadas regras europeias relativas aos défice das contas públicas. Confia que a baixa de impostos dinamize a economia e esta cresça de modo a que a receita fiscal pelo menos se mantenha. Se conseguir tudo isto terá o caminho aberto para uma reeleição no curto prazo. A questão, porém, é outra: quem vai pagar esta política, caso o impacto económico - e, consequentemente, a receita fiscal - for abaixo das expectativas governamentais? Era bom que o governo esclarecesse.

quinta-feira, 11 de abril de 2024

A cruzada de Passos Coelho

Pedro Passos Coelho surge como um cruzado em guerra contra os infiéis. Contudo, estes infiéis já não são a esquerda, mas aqueles que se reconhecem numa visão liberal dos comportamentos humanos. Os salamaleques de Ventura são o sinal dessa reorientação do antigo primeiro-ministro, que se está a tornar a nova esperança não do conservadorismo democrático, mas daquele que nunca conviveu bem com a democracia liberal. A intervenção de Passos Coelho no lançamento do livro Identidade e Família gerou uma clara ruptura na direita portuguesa. Nem a Iniciativa Liberal nem parte substancial do PSD se reconheceram nos valores que estão subjacentes a essa intervenção. Neste momento, parece que o grande objectivo de Passos Coelho é fazer bascular toda a direita para as portas de uma visão autoritária dos costumes e da sociedade, uma visão que tornaria indistinta a direita radical de Ventura e as direitas democráticas. Apesar da forte contestação surgida na militância da direita democrática, nada garante que Passos Coelho não ganhe a sua cruzada contra a vida liberal e as direitas democráticas.

quarta-feira, 10 de abril de 2024

O círculo nacional de compensação proposto pela IL

Segundo Mariana Leitão, líder da bancada da Iniciativa Liberal (IL), houve duas coisas que afastaram, nas negociações, IL e PSD. Por um lado a baixa de impostos. Por outro, o círculo de compensação. O círculo de compensação seria um círculo eleitoral nacional que permitiria converter em mandatos de deputados os votos que, nos círculos distritais, não elegem deputados. Seria uma forma de tornar mais fiel a representação das opções políticas dos portugueses e reduziria o enviesamento dos resultados eleitorais que o método de Hondt, aplicado a círculos distritais, introduz. O grande problema desta reivindicação da IL não é a sua justiça, mas o facto dos grandes partidos não estarem interessados nela. O PSD, o PS e agora o Chega são os beneficiários do actual método de conversão dos votos em deputados e não se espera de nenhum deles que aceite substituir uma vantagem, ainda que injusta, por uma situação de maior justiça na representação política. A questão central da acção política é a conquista e manutenção do poder e um método de conversão menos enviesado torna essa conquista e manutenção mais problemáticas.

terça-feira, 9 de abril de 2024

As liberdades individuais sob ataque

A polémica gerada pela a apresentação, por Passos Coelho, do livro Identidade e Família, uma obra colectiva gerada no seio da direita conservadora é um sintoma do ambiente em que se vive. A obra podia ser apenas a expressão de um ponto de vista sobre a sociedade. Ela é mais do que isso. É um contributo para um ambiente de tensão e que visa desgastar os valores liberais. Não ao nível económico, pois aí essa direita é completamente liberal, mas ao nível dos costumes. Nada disto seria problemático, caso se inserisse apenas num debate normal de ideias. Contudo, este movimento de guerra cultural visa restabelecer uma situação em que as opções dos indivíduos deverão regular-se por aquelas que um grupo pretende impor. A questão da família tradicional é emblemática. Segundo os autores, a família tradicional está sob ataque. A verdade é que ninguém é impedido de formar uma família tradicional, de viver a vida no âmbito dessa família. O que irrita estas pessoas é que essa família não seja obrigatória, que as pessoas sejam livres para escolher o modo como orientam a sua existência. Se a família tradicional passa por uma crise, isso não se deve a que ela esteja a ser atacada por quem quer que seja, mas porque as opções livres do indivíduos podem gerar essa crise. E é este o inimigo dessa direita. Já não é o comunismo ou o socialismo que incomoda essas forças, a não ser na fogo-de-artifício retórico, mas as liberdades individuais, o facto de que cada um possa orientar a sua vida sem o recurso a um tutor da sua consciência.

segunda-feira, 8 de abril de 2024

A sensatez do novo ministro da Educação

Parece ter-se tornado uma disputa política a questão da realização das Provas Finais do 9.º ano no formato digital. Questionado sobre a sua suspensão, como exige a IL, o novo ministro da Educação, Fernando Alexandre, deu uma resposta sensata. Aliás, duas. Afirmou que a digitalização é um processo em que o novo governo está empenhado e que, relativamente, às Provas deste ano, está a ouvir as partes e que tomará uma decisão após reflectir sobre a situação, de modo a garantir a equidade. Não embarcou nas cruzadas antidigitalização e está a fazer aquilo que qualquer decisor político deveria fazer. Reflectir, ouvindo as partes, antes de decidir. Parece um bom começo.

domingo, 7 de abril de 2024

A cólera e o temor dos tempos actuais

Teresa de Sousa, no Público de hoje, titula a sua crónica com um Estamos a viver a "normalização" da extrema-direita. Por "normalização" entende o crescimento dos partidos da extrema-direita e da direita radical um pouco por toda a Europa. Ora, esta constatação insere-se numa imensa literatura, jornalística e académica, sobre a ascensão do radicalismo de direita e da crise da democracia liberal. Talvez o melhor caminho para perceber o que se está a passar não seja focar o olhar na extrema-direita, mas na crise que atravessa a visão liberal tanto ao nível interno dos países democráticos como ao nível geopolítico, onde a ordem liberal está a ser consistentemente desafiada pelos regimes autoritários. 

A extrema-direita e a direita radical crescem porque as políticas liberais - nos seus diversos níveis e não apenas no económico - não estão a responder com eficácia às perturbações sentidas pela comunidade política. Se se definir como objecto da política a gestão da autoprodução contínua de uma comunidade soberana, percebe-se que aquilo que está a assustar as pessoas e as leva para os braços dos radicais de direita é o temor não apenas da perda de soberania da sua comunidade política, mas também a sensação de que essa comunidade está a perder a sua identidade e, por isso, a perder a continuidade, isto é, a morrer. E não importa, do ponto de vista político, se a essas identidades são imaginárias ou se essa perda é, também ela, imaginária.

O cosmopolitismo liberal fundado numa ideia de sociedade resultante de um contrato racional entre indivíduos, tradição que vai de Locke a Kant e aos liberais contemporâneos, está a ser incapaz de lidar com as pulsões comunitárias fundadas na história e na tradição, nas mitologias identitárias que alicerçam as comunidades políticas e que tinham a sua expressão política forte na figura do Estado-Nação. Nos anos noventa do século passado e no início deste, havia uma imensa literatura sobre a morte do Estado-Nação, nomeadamente, o europeu. Ora, talvez a notícia dessa morte fosse exagerada. O crescimento da extrema-direita e da direita radical parece a modalidade que tomou a resistência do Estado-Nação ao anúncio do seu desparecimento. Sem perceber isto, o projecto liberal, tomado na sua amplitude, será incapaz de lidar com a situação e perceber aquilo que nele está assustar as pessoas, levando-as a fazer escolhas que acabarão por deitar fora o bebé com a água do banho.

sábado, 6 de abril de 2024

O 25 de Abril e as adversativas da direita

Três partidos da direita - IL, CDS e Chega -  pretendem incluir o 25 de Novembro nas comemorações do cinquentenário do  25 de Abril.  Isto mostra, mais uma vez, que pelo menos uma parte da direita portuguesa tem dificuldades em lidar com a ruptura trazida pelo 25 de Abril de 1974 e o subterfúgio do 25 de Novembro é uma forma de colocar reticências a essa transição. Contudo, o 25 de Abril representa apenas o derrube de um regime autoritário, no qual qualquer democrata se pode reconhecer sem ter de usar adversativas. 

O poema de Sophia de Mello Breyner Andresen diz o essencial do que foi o 25 de Abril e nesse dizer não se vê necessidade de colocar o 25 de Novembro, nem, já agora, o 28 de Setembro e o 11 de Março: Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo. O 25 de Abril é apenas esse dia inicial inteiro e limpo. Depois, as várias partes (e foram mesmo várias e não apenas uma) foram-no manchando, cada uma à sua maneira, mas essas manchas são a história. 

Há, contudo, uma clara razão para que parte substancial da direita necessite de adversativas, precise do mas do 25 de Novembro (o qual, e não por acaso, foi obra da esquerda moderada). No dia 25 de Abril, a direita política está toda ao lado da ditadura. Há algumas raras e muito honrosas excepções, mas o grosso das hostes políticas da direita portuguesa não sentia qualquer atracção por um regime democrático-liberal, apoiava a política colonial, a existência de censura e polícia política, a perseguição dos oposicionistas, não se mostrava sensível à existência de pluralismo político e por aí fora. É este o problema que está na base do culto do 25 de Novembro por parte da direita, culto que, por acaso, não é partilhado por aqueles que fizeram os 25 de Novembro.

sexta-feira, 5 de abril de 2024

A irrupção do irracional na política

O primatologista Frans Waal disse, referindo-se ao seres humanos, somos parte natureza, parte cultura, em vez de um todo bem integrado. A moralidade humana é apresentada como uma fina camada sob a qual fervem paixões anti-sociais, amorais, egoístas. É impossível compreender os actuais comportamentos políticos sem ter em consideração aquilo que nós somos. A cena política foi dominada nas últimas décadas, desde o fim da segunda guerra mundial, por duas concepções políticas rivais, que se combinaram em diversos matizes, mas ambas fortemente ancoradas na moralidade. Tanta as concepções liberais como as socialistas são, antes de concepções políticas, concepções morais. Ora, assiste-se, desde o início deste milénio, à irrupção abrupta na vida política das paixões amorais, egoístas - tanto individuais como colectivas - e anti-sociais. A capacidade da extrema-direita em atrair o eleitorado está no facto de ela conseguir desencadear paixões que as moralidades racionais apolíneas, presentes no liberalismo e no socialismo, já não conseguem suster. Como explicar o poder de atracção que uma figura como Donald Trump exerce em parte muito significativa do eleitorado? O que se está a passar é o estilhaçar dessa fina camada moral sob a qual fervem as nossas paixões. Não é a primeira vez que isso sucede na história, e, por norma, os resultados não são recomendáveis. O filósofo norte-americano John Rawls pensava que seria possível que concepções abrangentes de vida (morais, religiosas ou filosóficas) razoáveis, mas incompatíveis, convivessem numa sociedade democrática baseada em princípios de justiça imparciais. O problema, porém, é diferente nos nossos dias, pois emergiram nas sociedades ocidentais concepções abrangente irrazoáveis, de forte pendor dionisíaco, que não estão dispostas a qualquer consenso.

quinta-feira, 4 de abril de 2024

O drama dos logótipos

O drama dos logótipos governamentais é revelador do ambiente político em que vivemos. O importante não é que um governo tenha adoptado um logótipo de índole abstraccionista e o seguinte o tenha substituído por um mais figurativo, digamos assim. O importante foi a guerra, baseada numa hermenêutica simbólica canhestra, que o logótipo abstraccionista desencadeou, tanto por motivos nacionalistas (a ideia de que estavam a suprimir os símbolos da nação) como por motivos estéticos. Essa guerra é apenas um sintoma da polarização política em que os sectores mais radicais da direita estão apostados. Não desperdiçam qualquer oportunidade para traçar clivagens, para valorizar o que é irrelevante (um logótipo de um governo não é um símbolo nacional, mas uma imagem promocional) e, com isso, tentar destruir as instituições democráticas, a vida civilizada baseada na convivência entre pessoas com perspectivas diferentes sobre o mundo e a vida. Por detrás de tudo isto, existe uma cultura de profunda intolerância que se agita e procura, a todo custo, impor-se. Trabalha por etapas e já deu alguns passos significativos. Não, amanhã não vamos ter uma ditadura, mas caminhamos para uma democracia iliberal e um estado autoritário, a médio prazo.

quarta-feira, 3 de abril de 2024

PSD e PS, que a morte seja do outro

O essencial do discurso de Luís Montenegro, na tomada de posse, resume-se à definição de uma estratégia de campanha eleitoral e, ao mesmo tempo, de sobrevivência partidária. Tentar passar o ónus da governabilidade para quem está na oposição nada tem que ver com um esforço para chegar a acordo com os socialistas, mas uma tentativa de fazer crescer o eleitorado próprio à custa do eleitorado moderado do PS. A resposta dos socialistas será da mesma ordem, puro cálculo para não serem devorados. O sistema partidário português está a aprender a lidar com o aparecimento em força da extrema-direita e os dois partidos do centro estão convencidos de que um deles acabará por morrer. Cada um calculará o caminho de modo a que a morte seja do outro. Em França, morreram ambos.

terça-feira, 2 de abril de 2024

Lançar o caos

No Público, João Miguel Tavares chama a atenção para um dos pontos do programa do Chega que é, efectivamente, muito perigoso. Trata-se de "Reconhecer aos membros das forças de segurança o direito à filiação partidária, bem como o direito à greve". Só um partido que esteja interessado em destruir as instituições democráticas proporia semelhantes direitos. Imagine-se uma polícia atravessada por conflitos partidários. Com a polarização crescente, os deveres de lealdade para com o país e respectiva governação facilmente se transfeririam para os partidos políticos. Ora, as forças de segurança, bem como as de defesa, assim como as instituições judiciais, devem fazer parte de uma estrutura de consenso alargado não partidário, consenso esse que permite a dissensão político-partidária. Partidarizar as forças de segurança é uma estratégia para lançar o caos no país, pois destruiria um dos pilares fundamentais do consenso em que repousa qualquer democracia.

segunda-feira, 1 de abril de 2024

Serviço Militar e Serviço de Cidadania

Começou a discussão pública do retorno do Serviço Militar Obrigatório. Uma visão alternativa é apresentada pelo Major-General João Vieira Borges, do Observatório de Segurança e Defesa, da SEDES, o Serviço Nacional de Cidadania (aqui). Uma das fontes inspiradoras é a Áustria onde os jovens têm de dar entre seis meses a um ano da sua vida à comunidade, seja na saúde, na educação, nas florestas ou no serviço militar, tendo alguma remuneração. 

Estamos perante dois problemas distintos. Por um lado, a necessidade que Portugal, como os outros países europeus, tem de dispor de Forças Armadas modernizadas, eficientes e prontas para intervir num mundo que se está a tornar hostil. O outro problema prende-se com o estabelecimento de um dever para com a comunidade, uma forma de retribuição daquilo que ela dá a cada um e um fomento da ligação de cidadania ao todo nacional.

O Serviço Militar Obrigatório deve estar relacionado com a avaliação da sua eficiência na Defesa Nacional e não ser o produto de visões ideológicas. Caso seja útil, deverá voltar a ser introduzido. Caso crie mais problemas do que aqueles que resolve, o melhor é não o reintroduzir. A decisão deve ser sempre tomada a partir da avaliação da sua eficiência para a defesa nacional.

Um Serviço Nacional de Cidadania é um ideia interessante, embora terá, previsivelmente, contra ela aqueles que o terão de prestar. As novas gerações, que se têm mostrado muito permeáveis ao discurso nacionalista radical, teriam aqui uma oportunidade para mostrar o seu apego aos valores nacionais, um apego que não derivaria da vida nas redes sociais, mas de uma acção continuada, durante um certo espaço de tempo, de serviço à comunidade.

domingo, 31 de março de 2024

A mitologia dos independentes

Sempre que se forma um governo, de direita ou de esquerda, surge de imediato a retórica de uma das mitologias mais acarinhadas do imaginário comunicacional do país, a da presença ou ausência de independentes, pessoas vindas da sociedade civil e que, pelo seu elevado estatuto numa dada área, seriam mais-valias admiráveis ou, mesmo, verdadeiros salvadores. Em tudo isto há um lamentável equívoco. As pessoas que integram um governo não vêm trabalhar na sua área de especialidade, na qual geraram a sua reputação, mas vêm fazer política. São necessários políticos preparados, que conheçam os dossiês que vão tutelar. Ser cientista de grande mérito não dá qualquer garantia de que se seja um óptimo - ou sequer um bom - ministro da Ciência. Pode até ser muito prejudicial, pois o cientista está condicionado pelo seu trabalho, possui uma visão particular e enviesada da área que vai tutelar. O mesmo serve para qualquer outra área. É preciso que os partidos políticos tenham, na sua estrutura de militância, quadros especializados nas políticas das diversas áreas. Quadros que, enquanto fazem política, estudam e preparam as políticas que, estando no governo, deverão ser aplicadas, tendo em consideração o interesse nacional e não apenas o sectorial. Os especialistas talentosos, com peso na sociedade civil, caso queiram entrar na política, inscrevam-se no partido da sua eleição, aprendam a fazer política, enquanto dão um contributo ao partido para construir uma dada política sectorial. Isso seria muito mais sério do que a ladainha da ausência de independentes, de fechamento à sociedade civil, como se esta fosse exemplar e de lá, por um passe de mágica, saíssem políticos muito mais competentes do que aqueles cuja vida é fazer política. 

sábado, 30 de março de 2024

A motivação dos eleitores

No Público há um título interessante, pois revela uma visão pouco adequada da realidade política actual, uma visão ancorada no passado. O título diz: PSD acredita que resolução dos problemas do dia-a-dia vai esvaziar votos de protesto. Teria razão, caso o voto de protesto viesse da esquerda. Esse seria um voto que sinalizaria um desejo de integração efectiva no sistema político, pela melhoria das condições de vida. Será que a generalidade dos votos no Chega são votos de protesto tradicionais? O que se percebe nas experiências da Europa e dos EUA não parece apontar neste sentido. São votos que contestam a democracia representativa, o jogo de checks and balances que constrange os detentores do poder, a vida política fundada na argumentação contínua. Seria interessante estudar o voto, nas últimas eleições, dos eleitores que ganham o ordenado mínimo e perceber a percentagem dos que votaram na extrema-direita. O interesse reside no facto de terem sido os governos de António Costa que promoveram um crescimento nunca visto do salário mínimo. Muito provavelmente, isso não garantiu aos socialistas o voto desses eleitores. O voto estará a ser orientado por outras motivações que não os problemas do quotidiano. As democracias - isto é, s defensores das democracias liberais - terão de repensar as motivações dos eleitores e reinventar o jogo democrático.

sexta-feira, 29 de março de 2024

A legislatura, um teste de stress à democracia

Do novo governo diz-se que é um executivo de combate político. Subentendido está que mais do que governar efectivamente segundo um dado programa o que está em causa é sobreviver num parlamento adverso e preparar o caminho para próximas eleições. Isto manifesta um dos problemas dos regimes democráticos onde os executivos têm uma dependência directa do parlamento. Os sistemas parlamentares e semipresidenciais, como o português, funcionam bem enquanto não existem, com peso decisivo, partidos disruptivos. 

Os eleitores, ao darem um peso significativo ao Chega, não fizeram uma escolha que permitisse a emergência de uma solução política, mas optaram por introduzir uma disrupção no parlamento e na governação do país. Sabiam à partida que muito dificilmente a direita democrática poderia coligar-se com um partido com uma agenda disruptiva do sistema político e com questões programáticas e civilizacionais que infringem gravemente a identidade de partidos como o PSD e o CDS. 

A disrupção das instituições democráticas é, numa época em que os golpes de estado não estão na moda na Europa (talvez lá se chegue, de novo), o caminho para afirmar projectos iliberais, senão mesmo autoritários, personalizados num líder carismático tido por salvador. Aquilo que assistimos durante a eleição do Presidente da Assembleia da República, não apenas no não cumprimento de um compromisso institucional, mas também nas declarações no hemiciclo no pós-eleição, são apenas o sinal do que vem aí. Estamos perante um duro teste de stress à democracia.

quinta-feira, 28 de março de 2024

Governo novo, políticas velhas

Enquanto não se conhece os novos ministros, há algumas coisas que se sabe. A política do novo governo não será substancialmente diferente  da do anterior. Por três motivos. Primeiro, porque grande parte das políticas governativas dependem das regras europeias, e a criatividade dos nossos governantes, por maior que seja, bate sempre contra essa realidade, à qual nos submetemos livremente (e para nosso bem, acrescento). Por outro lado, e este é e segundo motivo, a maioria que suporta o governo é tão pequena que os ímpetos reformistas - isto é, os ímpetos para piorar a vida das pessoas em nome de um hipotético futuro - esbarrarão com a oposição tanto da esquerda como do Chega. O terceiro motivo prende-se ao cálculo político do governo. Aplicar o programa da AD conduziria a uma rejeição por parte substancial do eleitorado, quando percebesse que o choque fiscal que beneficiaria uns, uma minoria, iria ter consequências tenebrosas para muitos outros, que seriam a maioria, apesar das promessas em contrário. Ora, a AD precisa de ganhar ímpeto eleitoral para as próximas eleições, que poderão estar à porta. Resta a Montenegro gerir aqueles dossiês que não implicam opções ideológicas de fundo, como o novo aeroporto, ou a questão das reivindicações dos diversos corpos da função pública, coisa que terá o apoio de toda a gente, mesmo dos socialistas que sempre se opuseram a essas reivindicações. O resto é uma questão de retórica entre os hooligans das diversas facções e de guerrilha partidária nas televisões, onde o novo governo está em maioria absoluta.

quarta-feira, 27 de março de 2024

A eleição na Assembleia, o medo e a falta de voz

Independentemente do que acontecer hoje na Assembleia da República, haja ou não um presidente eleito, há duas coisas que até para os mais distraídos ficaram claras desde o dia de ontem. Em primeiro lugar, estamos numa situação triangular em que todos são obrigados a calcular cada passo que dão. O Chega está em maré ofensiva e explora a situação com a finalidade de destruir o PSD, o seu grande objectivo imediato. O PSD está numa situação defensiva, por culpa própria, porque teve medo. Há quem pense que o PSD age condicionado pela esquerda e pela retórica antifascista. Pura ilusão. O medo que atinge as entranhas do PSD não provém de ficar mal na fotografia antifascista - a que, na verdade, nunca pertenceu - mas de não saber como lidar com o fenómeno Chega. Teme fazer acordos e teme não os fazer. Em qualquer dos casos sente que pode ser devorado pelo partido de Ventura. O PS, por seu lado, também está na defensiva, pois teme que os estilhaços da guerra nas direitas o atinjam. Se der um apoio ao PSD sem contrapartidas que sejam interessantes para o PS, será visto como fraco, além do mais ajudará a alimentar a repugnante retórica do Chega acerca dos tachos. Se não der esse apoio, será visto como faccioso aos olhos do centro político. Em segundo lugar, ficou dado o mote para a chicane política que virá aí. Luís Montenegro parece não ter nem a autoridade nem o talento que a situação difícil exige. Não percebeu que, no âmbito da direita democrática, para lidar com Ventura é preciso ter voz forte e iniciativa contínua, o que parece não ser o caso.

terça-feira, 26 de março de 2024

O não casamento entre IL e PSD

Tendo em consideração os resultados eleitorais, era de difícil compreensão as razões que poderiam conduzir a Iniciativa Liberal (IL) e o PSD a celebrarem qualquer tipo de acordo. Hoje deu-se o reconhecimento oficial desse facto (aqui). A escassez de deputados da IL não acrescentaria nada à escassez de deputados do PSD/AD. Não resolveria nenhum problema a Luís Montenegro e teria todas as possibilidades de criar alguns que este, nesta fase, dispensa. Por outro lado, a situação é tão precária que a IL teria muita dificuldade em fazer vingar as suas teses mais radicais, aquelas que dão ânimo aos seus militantes e que têm um elevado potencial para atirar o eleitorado para os braços da esquerda ou do Chega. Foi um não casamento por mútuo acordo. 

segunda-feira, 25 de março de 2024

O excedente orçamental

O governo que agora cessa funções deixa ao futuro governo uma situação financeira estabilizada. Se os socialistas, em vez de se terem preocupado com as contas do país, tivessem usado o dinheiro para satisfazer as exigências que parte substancial da função pública fez nos últimos anos, é plausível pensar que teriam vencido as eleições de 10 de Março, embora sem maioria absoluta e, provavelmente, sem uma maioria de esquerda na Assembleia da República. É de assinalar que os oito anos do consulado de António Costa se pautaram pela compatibilização de dois mundos, em aparência incompatíveis. O mundo das contas certas e o mundo da atenção à dimensão social. É preciso recordar que, há oito anos, quando Passos Coelho e Paulo Portas ganharam as eleições, mas ficaram em minoria na Assembleia, a coligação de direita se preparava para fazer mais cortes na dimensão social. As governações socialistas evitaram a deriva neoliberal e, ao mesmo tempo, tiveram desempenhos orçamentais sempre acima da expectativa. O excedente orçamental, para além da utilidade para o país, pois visa diminuir a dívida pública que sufoca a vida nacional, é um símbolo de uma gestão rigorosa, mesmo que haja socialistas a torcerem o nariz e a dizer, não sem infelicidade, que o excedente orçamental tem uma coloração salazarenta. Veremos o que vem de seguida, se uma preocupação com o equilíbrio financeiro, se uma deriva ideológica em torno do choque fiscal.

domingo, 24 de março de 2024

A justiça ou a eficência das instituições

Há dias, já não sei onde, talvez numa rede social, vi um pequeno vídeo que mostrava três grandes bibliotecas na China. Os edifícios são de uma modernidade arquitectónica extraordinária e a sua beleza surpreendente. Contudo, o mais impressionante é o sinal político que representam. Mostram a pujança da China, claro, mas o mais saliente é que são uma espécie de argumento a favor dos regimes autoritários e autocráticos. Pretendem mostrar a eficiência destes regimes quando comparados com as democracias liberais. O filósofo norte-americano John Rawls afirmou que instituições injustas, por eficientes que sejam, devem ser mudadas. Este era um credo basilar da cultura liberal do Ocidente. Ora, as potências autocráticas actuais pretendem afirmar a sua superioridade mostrando um grau elevado de eficiência na resposta aos anseios das populações, invertendo a máxima de Rawls. Por mais justas que sejam as instituições, se elas não responderem aos anseios populares, então devem ser mudadas. E este é um problema real nas democracias liberais do Ocidente.

sábado, 23 de março de 2024

A situação na Alemanha

O governador do banco central alemão, Joachim Nagel, parece ter abandonado a circunspecção política que este tipo de personagens por norma ostenta. Não apenas confessou ter participado, recentemente e pela primeira vez na vida, numa manifestação em defesa da democracia, como declarou que a extrema-direita é um perigo para o bem-estar dos alemães, pois afasta investidores e trabalhadores estrangeiros necessários ao desenvolvimento económico (ver aqui). Ora, o que move a extrema-direita não é o bem-estar dos respectivos povos, mas a ocupação do poder e a transformação dos cidadão livres em sujeitos submetidos à dominação de quem ocupa o poder e deseja realizar as suas fantasias nacionalistas. A extrema-direita não quer saber se a economia funciona ou não. Melhor, quanto pior funcionar, mais possibilidades terá de chegar ao poder. Por isso, tudo fará para haja falta de mão-de-obra e de investimento. Não é um concorrente democrático ao poder com vista a melhorar as instituições democráticas. É um inimigo da democracia e das liberdades. Ora, se um governador do banco central da Alemanha se predispõe a dizer aquilo que Nagel disse, então a situação está muito mais perigosa do que se pensa.

sexta-feira, 22 de março de 2024

A realidade e os desejos económicos da AD

Acabadas as eleições e ainda sem governo formado, a realidade começa a bater à porta de Luís Montenegro. O programa económico da AD, um programa abundantemente encomiado pelos comentadores habituais das televisões, os quais começam a encontrar desculpas para a sua não concretização, queria o melhor de dois mundos possíveis. Por um lado, um choque fiscal; por outro, aumentar a despesa público. Os encómios deviam-se à comparação com o programa económico socialista. O programa da AD era mais ousado, o dos socialistas mais conservador. Na verdade, o da AD era um programa baseado não na racionalidade, mas na fé ideológica, tendo em conta a realidade onde estamos inseridos. Os avisos começam a chegar. Hoje, foi o governador do Banco de Portugal a alertar para que o país não quer voltar para os procedimentos por défice excessivo (aqui). Por outro lado, as regras europeias estão longe de suportar o programa económico da AD. Parece que cortar fortemente nas receitas e aumentar as despesas ou mesmo não as diminuir acabará por conduzir o país a uma situação difícil (aqui). Veremos se o novo governo tem o talento de fazer com que haja chuva no nabal e sol na eira. 

quinta-feira, 21 de março de 2024

António Costa

António Costa sai das suas funções como uma personagem política de uma outra dimensão. No périplo pela Europa tranquilizou os parceiros europeus perante a nova situação política. Esclareceu que o PSD é um partido de clara vocação europeísta e acrescentou que mesmo o Chega, ao contrário de muitas partidos de extrema-direita europeus eurocépticos, nunca pôs em causa a pertença de Portugal à União Europeia. A defesa do país em primeiro lugar, deixando de lado razões ideológicas ou partidárias. Agora, convidou o Presidente da República (ver aqui) para a última reunião do Conselho de Ministros, ele que tinha todas as razões pessoais e políticas para não o fazer. Mais uma vez, o interesse de Estado sobrepôs-se aos seus sentimentos pessoais. António Costa, por muitas campanhas que se façam contra ele, pertence a uma outra dimensão, acima daquilo que se move na política nacional. Talvez um dia o país perceba a verdadeira dimensão daquele que vai deixar de ser primeiro-ministro dentro de dias.

quarta-feira, 20 de março de 2024

Os jogos florais do Chega

Os jogos florais de André Ventura e dos seus amigos dentro do PSD em nada se relacionam com a estabilidade política. Não é claro sequer que André Ventura tenha interesse em entrar no governo. O que ele pretende é desgastar o PSD. Se for recusado um governo com o Chega, aproveitará para fazer o papel de vítima. Se Luís Montenegro voltar atrás e fizer uma coligação governamental com o Chega, este usará o governo como lugar de propaganda, acusando o PSD de o impedir de aplicar o seu, do Chega, programa. Neste momento, André Ventura está convencido de que está no melhor dos mundos possíveis. Quer fique de fora do governo, quer fique dentro dentro dele, a situação é-lhe de tal modo favorável que a única coisa que pode acontecer é a morte do PSD, a sua grande aposta.

terça-feira, 19 de março de 2024

A derrota da esquerda

Na análise das eleições, os antigos companheiros do PS na geringonça, PCP e BE, acusam a governação socialista de ser responsável pelos resultados eleitorais favoráveis à direita. O que não avaliam, todavia, é a incapacidade de ambos, PCP e BE, de tirarem proveito dessa eventual má governação e de crescerem de modo significativo. Não perceberam que, ainda que diferentes, as narrativas em que assentam tanto o discurso como a acção de ambos deixou de ter capacidade para mobilizar o eleitorado. A visão do mundo que propõem perdeu pregnância junto dos eleitores e a derrota que a esquerda, no seu todo, sofreu pode ter, mais do que se pensa, uma natureza estrutural, a qual parece ignorada pelos três partidos tradicionais da esquerda portuguesa. O Livre é uma novidade e, por agora, está fora deste problema, embora não esteja imune.

segunda-feira, 18 de março de 2024

Suécia, Itália, a degradação da democracia

No relatório da organização Liberties, divulgado hoje (aqui), começa a haver evidências empíricas sobre o modo como a extrema-direita corrói, em países como a Suécia ou a Itália, as liberdades e o Estado de direito. O avanço da extrema-direita perdeu o ar brutal dos golpes militares. Aproveita-se da democracia liberal e do Estado de direito e, chegando ao poder, de um modo soft, vai destruindo essa mesma democracia, limitando a liberdade de expressão e desestruturando o Estado de direito. A certa altura, está-se num Estado autoritário, quase sem se dar por isso. Depois, o soft power transforma-se em hard power, com a panóplia de horrores que sempre se lhe associam. 

domingo, 17 de março de 2024

O banho de sangue

Donald Trump anuncia, em caso de derrota nas próximas eleições presidenciais americanas, um banho de sangue (aqui). Dir-se-á que se trata de uma retórica de chantagem sobre o eleitorado indeciso. Também o é, mas será mais do que isso. Os EUA estão divididos ao meio, como se fossem duas nações inimigas. Quando os actores políticos têm comportamentos como o de Trump o banho de sangue torna-se mais provável. Há uns anos ninguém acreditaria que fosse possível nos EUA a invasão do Capitólio. Ela, porém, aconteceu. O facto de Trump anunciar um banho de sangue não lhe rouba um voto e não causa qualquer escândalo nos seus apoiantes. Se Biden fizesse uma declaração semelhante, não faltariam ondas de revolta. Isto é um sinal que o banho de sangue é plausível. Neste momento, enquanto Trump for o protagonista do lado dos republicanos, tudo pode acontecer. 

sábado, 16 de março de 2024

A governação socialista

Quando se olha para a imagem que o governo entretanto caído tinha e tem na opinião pública e na comunicação social fica-se com a ideia de que estávamos numa terrível situação de crise, estávamos mesmo à beira da catástrofe. No artigo de hoje, no Público (aqui), Pacheco Pereira, militante do PSD, mostra outra coisa. Textualmente afirma: O país, cujos indicadores económicos, financeiros e sociais (sic) foram bastante bons, e verificados internacionalmente (sic) não entrava nas notícias e nos comentários, assim como as chamadas de atenção para a "normalidade" de Portugal, mesmo no meio das "crises" por comparação com a Europa, não encaixavam na norma das agendas circulantes." 

Houve, muitas vezes, displicência nos governos de António Costa, é um facto. Contudo, os seus governos viveram sempre acossados, começando no início, com as espúrias exigências de Cavaco, como se ele tivesse direito de se substituir à Assembleia da República, passando, depois, por Marcelo Rebelo de Sousa, cuja proximidade de António Costa nunca deixou de ser instrumental, e acabando - o factor fundamental - no comunicação social, toda ela na mão da direita e com um agenda política muito vincada. Ora, nem a displicência socialista nem o cerco a que os seus governos foram sujeitos evitaram que os resultados das governações socialistas fossem reconhecidos, internacionalmente e de modo independente, como bons, se não mesmo como exemplares, apesar das "crises", isto é, da pandemia da COVID-19 e da guerra na Ucrânia.

No post de ontem, falou-se sobre a fuga dos eleitores socialistas para o Chega ou a vergonha daqueles que permaneceram fiéis. Existirão várias razões para esses dois fenómenos, mas uma das principais estará na campanha sistemática, desde a primeira hora, que a comunicação social lançou contra a governação socialista. Como Pacheco Pereira salienta, casos isolados eram trabalhados, na comunicação social, para darem uma imagem de caos. E isso acontecia sistematicamente. Por outro lado, os bons resultados eram minimizados. Não bastará, na governação, a esquerda obter bons resultados e reconhecimento independente, terá de aprender a viver com uma comunicação social completamente adversa e com um comentariado político na mão da direita. Terá de aprender a viver num ambiente comunicacional que trocou, há muito, a independência pela militância e, não poucas vezes, pela milícia.

sexta-feira, 15 de março de 2024

Os eleitores socialistas

Começam a sair os dados dos inquéritos feitos à boca das urnas nas eleições de domingo (ver aqui). Há dois dados interessantes relativamente aos eleitores do Partido Socialista. É já claro que uma parte da perda de votação socialista se deve à transferência de votos para o Chega. Este dado é plausível, pois, entre o eleitorado dos partidos tradicionais (CDS, PSD, PS, PCP e BE), o eleitorado socialista é o menos consistente ideologicamente, embora tenha um bom stock de eleitores fiéis. A maioria dos eleitores dos partidos tradicionais à direita do PS são consistentemente de direita, assim como os eleitores à esquerda do PS são consistentemente de esquerda. A massa eleitoral do PS, porém, é aquela que não é uma coisa nem outra e, não tendo consistência ideológica, não vê razão que a impeça de transferir o seu voto do PS para o Chega, como já o fizera, em menor medida, para o Bloco de Esquerda. 

Outro dado interessante é o dos eleitores fiéis aos socialistas. António Salvador, director-geral da empresa de sondagens Intercampus, fala em espiral de silêncio dos eleitores socialistas, coisa que em 30 anos nunca tinha visto. Muitos não quiseram participar nos inquéritos. Segundo Salvador, as pessoas tinham vergonha de dizer que iam votar PS. Segundo ele, as razões seriam um misto de desconforto, desilusão e dúvida. 

Estes dados deveriam ser lidos com muita atenção pelos dirigentes do PS. Como foi possível que em dois anos uma fatia substancial dos eleitores socialistas se tenha transferido para a extrema-direita? Que razões levam o eleitor socialista fiel a ter vergonha da sua fidelidade? Seria bom para o PS - e para a democracia em Portugal - que o partido olhasse para a sua cultura política, para o modo como conduz a sua acção, e se interrogasse sobre se não chegou a altura de mudar o modo, sobranceiro e displicente, como se tem relacionado com o poder.

quinta-feira, 14 de março de 2024

A derrota do liberalismo

Um dirigente do PSD, Miguel Pinto Luz, em entrevista ao Público (aqui), usa uma frase interessante em relação ao eleitorado do Chega. A certa altura diz: temos de ter cuidado com essas pessoas e temos de acarinhar esse eleitorado. Palavras como cuidado e acarinhar pertencem ao campo do afecto e não ao campo político. A frase é, na verdade, a confissão de uma impotência transversal aos partidos da governação. Os eleitores do Chega estão zangados com o sistema, mas a razão dessa zanga é bem mais profunda e complicada de resolver do que parece. A lógica das governações liberais - sejam mais à direita, sejam mais à esquerda - colide com a expectativa daqueles que se sentem zangados.

As governações e os governantes liberais (sejam do PSD ou do PS) esperam que os cidadãos, usufruindo da liberdade, façam alguma coisa pela sua vida. Os cidadãos zangados, pois a vida não lhes corre como desejam, esperam que o Estado faça alguma coisa por eles. O crescimento do Chega funda-se neste conflito silenciado, por uns e por outros. Os seus eleitores - não todos, claro - julgam que o Estado deve cuidar deles. Os que ocupam o Estado fazem-no numa lógica em que, para além de um mínimo, cada um terá de cuidar de si mesmo. 

As palavras de Miguel Pinto Luz são eloquentes, pois manifestam a perplexidade de um político liberal perante uma votação que não foi outra coisa se não um pedido de instauração de uma república assistencialista, um retorno a um forte poder pastoral, para citar Michel Foucault. Certamente o que um dirigente do PSD gostaria de dizer seria: tomem em mão a vossa liberdade e façam alguma coisa por vós, tenham iniciativa (foi o que, em tempos, disse Passos Coelho). Perante a falência do espírito liberal representada pelo eleitorado do Chega, resta-lhe falar em cuidar e acarinhar o rebanho. A votação no Chega foi uma votação contra o liberalismo, contra essa ideia de que cada um é responsável por si mesmo.

quarta-feira, 13 de março de 2024

O PCP e a rejeição do novo governo

O Partido Comunista, através do seu secretário-geral, afirmou hoje que vai avançar com uma moção de rejeição ao futuro governo. Na verdade, a moção de rejeição não se destina a evitar que o próximo governo entre em funções, mas é uma tentativa de colar à direita tanto o PS como qualquer outro partido da esquerda que não vote a moção comunista. Esta é uma lógica reconhecível no Partido Comunista, pois, com raras excepções, ela vem de há muito. É plausível que o PCP não associe esta estratégia ao seu declínio eleitoral e social. Preso a uma lógica férrea de divisão entre direita e esquerda, fala e age para o seu grupo restrito, cada vez menor. Imaginar-se-á o campeão da esquerdidade, digamos assim, mas isso não acrescentará um grama à sua influência política, podendo mesmo fazê-la diminuir. Toda a esquerda está numa situação difícil e precisa de muita imaginação para encontrar um caminho, num momento em que é claramente minoritária no parlamento. Parece que os comunistas não estão interessados nisso. 

terça-feira, 12 de março de 2024

Eleições e pensamento mágico

Este post do blogue Der Terrorist (ver aqui) é um retrato impressionista, mas interessante, que ajuda a explicar a enorme votação no Chega e, também, o facto de ela ser acompanhada por um princípio de esperança. A paisagem humana descrita é aquela que em tempos teria votado no Partido Comunista, caso estivéssemos no ambiente político e social de há 20 ou 30 anos. Há neste retrato duas imagens significativas. 

A primeira diz respeito à desconfiança perante os princípio liberais que regem a nossa economia. Essa desconfiança não se manifesta em relação à economia de mercado, mas aos actores políticos que a defendem - PS e PSD - que são vistos como a causa da desgraça das pessoas comuns. A segunda é a perda de esperança nos métodos tradicionais do sindicalismo corporizado pelo PCP e na própria ideologia da esquerda tradicional com o seu arsenal de apelos à luta de classes.

As pessoas não querem amanhãs que cantem, querem hojes em que vivam bem, querem deixar a sua condição social, havendo, claramente, no voto no Chega um elemento de pensamento mágico. André Ventura é o feiticeiro que, com uma varinha mágica, os tirará da situação em que estão, mesmo que tenham pouca instrução e poucas qualificações. Olham para ele não como um político, mas como um mágico. 

Escutam em êxtase aquele discurso que reproduz o deles e não conseguem ver os interesses que se movem por detrás da capa do mágico ou dentro da sua cartola. Não conseguem perceber que por detrás do mágico estão aqueles que beneficiam da sua actual condição, não conseguem perceber que não existe qualquer varinha mágica que os possa socorrer. Mais, não conseguem perceber que uma vitória do mágico está longe, muito longe de ser a vitória deles. Ninguém os salvará.

segunda-feira, 11 de março de 2024

A cabeça de Marcelo

Marcelo Rebelo de Sousa, com a ânsia de deixar o governo na mão dos seus, conseguiu pôr o país no caos. Substituiu uma maioria sólida e coesa por uma minoria acossada à direita e à esquerda. Os seus ganharam, mas imagino que em muitos quadros do PSD há o sentimento de que teria sido preferível perder as eleições. O actual PR arrisca-se a deixar o cargo com o seu partido em pantanas e a extrema-direita no poder. A paisagem do país político é uma emanação das confusões que habitam a cabeça do actual Presidente. Um caos.

domingo, 10 de março de 2024

A crise das democracias liberais

José Pedro Teixeira Fernandes, investigador na área das relações internacionais e colunista do Público, dá uma interessante entrevista ao mesmo jornal (ver aqui) motivada pela publicação do seu novo livro O Fim da Paz Perpétua: Geopolítica de um mundo em metamorfose. O autor refere que se está num ciclo político pouco favorável aos ideias kantianos e à paz perpétua. A entrevista centra-se na factualidade empírica da evolução do mundo e das democracias liberais. Contudo, há um portal pelo qual vale a pena e perceber, de um outro ponto de vista, a crise que os regimes democráticos atravessam, tanto na sua capacidade de atracção dos povos para novas democracias, como na sua vida interna. Trata-se da crise do Iluminismo, movimento onde se inscreve o pensamento kantiano e a ideia, também kantiana, de paz perpétua.

A aliança entre o Iluminismo e o liberalismo criaram um movimento, em primeiro lugar, de secularização do Estado - o que foi essencial para evitar as guerras religiosas - a qual, de seguida, originou o crescimento se não do ateísmo pelo menos da indiferença religiosa. Este efeito é paradoxal, pois tanto o Iluminismo como o liberalismo, apesar de podermos encontrar autores nestas áreas marcadamente ateus e anticristãos, são uma emanação de ideias que germinaram e amadureceram no cristianismo. 

O corte das democracias liberais - em nome da secularização - com os valores e interpretação cristã tem vindo a escavar essas democracias, pois elas dependiam, apesar de se estruturarem em valores aparentemente não cristãos, da cosmovisão cristã que persistiu muito para além do domínio político da Igreja. O problema central das democracias liberais não é tanto a incompatibilidade crescente entre instituições democráticas estáveis e abertura ao mundo e ao cosmopolitismo, como salienta Teixeira Fernandes. Este problema, um problema real, põe-se porque deixou de existir uma cosmovisão partilhada que sustenta a legitimidade do poder político.

sábado, 9 de março de 2024

A proporcionalidade dos votos e dos assentos no parlamento

Amanhã haverá eleições, hoje é dia de reflexão, uma coisa extraordinária nestes tempos, e é interessante olhar para os métodos de apuramento dos lugares na Assembleia da República. Existem diversos, uns proporcionais, outros maioritários e outros mistos. O português é um método proporcional conhecido como método de Hondt (ver aqui o funcionamento do método). A proporcionalidade deste método, contudo, é limitada, favorecendo os grandes partidos. Um outro método proporcional, o de Sainte-Laguë (ver aqui o funcionamento do método), aproxima-se mais da proporcionalidade real presente nas urnas. 

Por norma, discute-se a questão entre o método de Hondt e um método maioritário (com os chamados círculos uninominais), havendo alguma inclinação, entre os debatentes, para uma mistira entre os dois sistemas de determinação de assentos parlamentares. Discute-se, também, a criação de um círculo nacional de compensação, para aproveitamento dos votos expressos que não elegeram deputados, coisa que ocorrerá sempre. Contudo, uma transição do método de Hondt para o de Sainte-Laguë tornaria a proporcionalidade da representação mais ajustada à proporcionalidade dos votos. Isto, porém, daria um parlamento mais fragmentado, impediria, de forma mais decisiva, as maiorias absolutas e obrigaria a entendimentos entre partidos. A Alemanha ou os países escandinavos usam variantes deste método. Nenhum método é perfeito, haverá sempre razões a favor e razões contra.

sexta-feira, 8 de março de 2024

Comentário como falsificação da realidade

Um factor de perversão da democracia portuguesa é a existência de ex-líderes políticos como comentadores nas televisões generalistas. Foi a partir desse comentário que Marcelo Rebelo de Sousa chegou à Presidência da República. As eleições de 10 de Março estão, de algum modo, pervertidas pelas intervenções de Paulo Portas e Marques Mendes, dois antigos dirigente dos partidos da AD e actuais apoiantes, incluindo na campanha, dessa mesma AD. Têm um espaço de comentário sem contraditório e apresentam-se às pessoas como se fossem independentes, enquanto interpretam a realidade de acordo com a visão dos seus partidos. A estratégia é parecer que se está a analisar objectivamente governos e oposições, distribuindo críticas e elogios como se se possuísse um padrão neutro de avaliação. Ora, esse padrão neutro não existe e aquilo que é feito não passa de condicionamento do eleitorado, fundamentalmente daquele que pode votar ora no centro direita, ora no centro esquerda. Esse condicionamento é fabricado pela passagem de certas narrativas que enquadram a apreciação da realidade política, distorcendo-a e favorecendo um dos lados. A questão nem é de estabelecer um equilíbrio de comentadores com a vinda para espaços televisivos idênticos de comentadores provenientes da esquerda. A questão é mesmo acabar com comentários feitos por pessoas comprometidas com posições político-partidárias e que parecem sugerir que, naqueles espaço, são independentes. Não o são.

quinta-feira, 7 de março de 2024

Ambiente e eleições

A campanha eleitoral segue alegre, como é hábito das campanhas eleitorais. Enquanto isso, o Fevereiro de 2024 foi o Fevereiro com temperaturas médias, nos oceanos e em terra, mais altas desde que há registos. Deveria a campanha, por causa desses pormenores, entristecer? Não, uma campanha eleitoral é sempre uma campanha alegre, mas deveria discutir o problema ambiental. A questão está armadilhada, com a proliferação do negacionismo fomentado pelos interesses das grandes indústrias poluidoras, contudo é uma ameaça real à espécie humana, à qual pertencem os portugueses. As grandes ameaças que Portugal enfrentará nos próximos anos estão ausentes da campanha eleitoral. Talvez os candidatos evitem de falar no diabo para que ele não apareça, mas esta expectativa pouco se coadunará com uma conduta razoável sobre o que nos espera.

quarta-feira, 6 de março de 2024

O acto falhado de Ventura

Se as pessoas soubessem o que significa um acto falhado, imagino que o Chega perderia uma parte dos seus votos. Não todos, claro, pois há em muitos apoiantes do Chega a mesma convicção que Ventura revelou através de um acto falhado. Num comício em Évora, Ventura falou em salvar Portugal da democracia (sic) (ver aqui). Os actos falhados, como ensinou Freud, têm o condão de trazer à luz do dia aquilo que uma pessoa pensa e que quer ocultar. Na verdade, o problema do Chega não é com o socialismo, como corrigiu Ventura, mas é mais amplo, é mesmo com a democracia. 

terça-feira, 5 de março de 2024

Passos Coelho, o visível lado oculto da AD

Passos Coelho é a verdade oculta do programa da AD. A direita tinha, e, na verdade, não deixou de ter, um projecto de empobrecimento de parte dos cidadãos, como contrapartida de enriquecimento de uma outra parte, através do chamado corte fiscal. Em 2014, Passos Coelho defendeu que os cortes salariais e de pensões era para se tornarem definitivos (ver aqui) e tê-lo-ia feito, caso tivesse uma maioria parlamentar nas eleições de 2015. Esta é uma estratégia que a direita levou a cabo nos EUA e Inglaterra, por exemplo. Os efeitos foram devastadores para as classes médias, mas foram um oásis para os mais ricos. A coisa é de tal maneira assustadora que há vários multimilionários a apelar para que os impostos sobre os mais ricos subam. 

Passos Coelho, por vezes, ostenta um tom ressentido perante António Costa. Isso deve-se a que as governações deste mostraram que o álibi da dívida era apenas um truque para beneficiar os grupos sociais mais ricos. Os salários e as pensões voltaram ao que estavam, primeiro, foram subindo, depois. Nada disso afectou o pagamento da dívida, nada disso afectou a sua diminuição. António Costa mostrou que o programa da direita estava assente numa mentira. É possível que uma parte daqueles que foram beneficiados pelas governações socialistas estejam zangados com elas e se predisponham a um retorno ao programa de Passos Coelho, pois é isso o que significa o corte fiscal proposto pela AD. Por certo, ficarão felizes quando salários e pensões forem de novo - agora, definitivamente, cortados - porque a receita é exígua e a dívida é para pagar. 

segunda-feira, 4 de março de 2024

O oculto nos programas eleitorais

Num artigo do Público, considera-se que a melhor maneira de tomar uma decisão, relativamente ao voto nas próximas eleições, é ler os programas dos partidos. Em parte, isso pode ajudar a perceber aquilo que cada partido propõe. Contudo, esta visão é ingénua. O que está escrito é aquilo que uma parte do eleitorado aceitará. O mais importante, muitas vezes, é o que não está escrito, mas que se tenciona fazer após as urnas fecharem e os votos estarem contados, o que muitas vezes assustaria até os eleitores fiéis. Todos os programas eleitorais são uma estratégia de revelação e de ocultação. Estão comprometidos não com a verdade das intenções, mas com a capacidade de persuadir o eleitorado. O mais importante, do ponto de vista do cidadão, é o exercício de uma hermenêutica da suspeita. Porquê suspeitar? Porque os programas eleitorais são um género da literatura ideológica, a qual, de modo mais ou menos consciente, é uma forma de distorcer a compreensão dos cidadãos. Não de todos, pois há eleitores que percebem muito bem aquilo que está oculto num dado programa e quando aceitam um, aceitam o escrito, mas, fundamentalmente, o não escrito, pois é este que agrada ao seu desejo. É bom ler os programas dos partidos, mas o melhor seria ter a capacidade de ler o que se oculta, seja nas entrelinhas, seja na pura omissão.

domingo, 3 de março de 2024

Destruir a democracia

Começou. Durante todos estes anos de democracia, nunca a fiabilidade dos resultados eleitorais foi posto em causa. Nunca ninguém falou de fraude eleitoral. André Ventura está a ensaiar a campanha para lançar dúvidas sobre os resultados eleitorais (aqui). Este é mais um passo para a destruição das instituições democráticas. Mais, nem sequer é muito inovador, pois é cópia do que alguns inimigos da democracia fazem noutros lados. Pensar que o Chega é um partido como os outros é um equívoco que se poderá pagar caro.

sábado, 2 de março de 2024

A questão do rating da dívida

O facto de a agência Standard & Poor's ter subido o rating da dívida portuguesa para -A não é negligenciável do ponto de vista da avaliação política dos governos de António Costa, apesar da pouca atenção que a comunicação social lhe deu. As opções políticas desenhadas em 2015 contrariavam a generalidade das opções que um novo governo de direita iria aplicar. Passos Coelho avisou que viria aí uma catástrofe, viria o diabo, devido à reversão dos direitos sociais que ele tinha confiscado e que se preparava para confiscar ainda mais duramente, a começar pelas pensões. Ora, o que se passou foi exactamente o contrário, apesar dos governos de António Costa terem de enfrentar uma pandemia e as consequências da guerra na Ucrânia. A gestão da dívida foi exemplar, os direitos confiscados foram devolvidos, o salário mínimo subiu para além de qualquer expectativa. Mesmo o investimento nas áreas mais problemáticas, como a Saúde, cresceu bastante. A esquerda mostrou que era possível compatibilizar o cumprimento das obrigações financeiras do país e a promoção do bem-estar das pessoas, a começar pelos mais vulneráveis. Nada disto, porém, pode ser suficiente para que a esquerda volte ao poder a 10 de Março. 

sexta-feira, 1 de março de 2024

O equívoco de Paulo Raimundo

Paulo Raimundo, líder do Partido Comunista, criticou as declarações de Rui Tavares, do Livre, que afirmou que "a direita democrática tem que ter alguém com quem dialogar". Considerou esta declaração como uma oportunidade para tornar o centro das atenções uma coisa que não tem interesse nenhum. O que é importante, considerou o líder comunista, é os salários, a habitação, a saúde. Por muito importantes que sejam as questões salariais, as da habitação e as da saúde, a questão do funcionamento do regime democrático ultrapassa-as de longe. Sem um regime democrático saudável, as outras questões são rasuradas e não encontram espaço para se manifestarem. Ora, parece que o PCP, por um lado, não percebe que não há incompatibilidade entre falar do são funcionamento do regime democrático e das questões que animam a campanha do PCP. Por outro, parece não atribuir importância ao esforço de evitar a degradação das instituições democráticas, as quais exigem um continuado de diálogo entre as partes. O diálogo defendido por Rui Tavares é a terapia constante que qualquer democracia exige. E isso é importante quando há forças que pretendem substituir o diálogo pelo confronto, como se pode perceber a partir do exemplo americano, mas também dos esforços que por cá se estão a fazer.

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Eleições e política científica

Num artigo do Público, A ciência é invisível nos debates e imutável nos programas eleitorais, a investigadora Mariana Carmo Duarte afirma: Os partidos querem diferenciar-se. A ciência não é um assunto saliente, nem mobilizador ou politizado, portanto não o debatemos e torna-se cada vez menos politizado. Há um equívoco na apreciação feita. O facto de a ciência não ser debatida é já uma modalidade de politização da ciência. Como as sociedades actuais dependem em grande parte da ciência, tanto da ciência aplicada às necessidades do quotidiano, como da ciência pura, o fundamento da aplicada, não trazer a questão da ciência ao debate público é uma opção política forte e revela uma atitude das elites políticas perante o investimento em conhecimento científico.

Esta opção política, relativamente à ciência, dos partidos poderá ser uma espécie de passadeira vermelha para que a discussão sobre a política científica se faça em torno de problemas aberrantes, como o criacionismo, o questionamento ideológica da teoria da evolução de Darwin, das ciências do clima ou até da investigação científica aplicada à produção de vacinas. A aparente despolitização da ciência é apenas um acto de má fé, no sentido sartreano, de tomar decisões pela não decisão, abrindo o caminho para uma politização histérica da ciência, a qual envolverá os habituais teóricos da conspiração e ameaçará o desenvolvimento científico do país.

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

A deriva da direita democrática

Não foi a intervenção de Passos Coelho sobre a relação entre imigração e insegurança, mas o apoio que está a receber no âmbito da direita moderada que mostram a deriva dessa direita em direcção às causas da extrema-direita populista (aqui). A direita moderada - mas também Passos Coelho, radicalizado há muito do ponto de vista económico e, agora, parece que do securitário - sabe que é falsa essa relação. Contudo, ela pode funcionar na exploração das emoções e agregar votos. Ir-se-á assistir a um resvalar cada vez mais acentuado da direita democrática da esfera da racionalidade para a das emoções, território de predilecção do populismo (escutar aqui a interessante entrevista à socióloga franco-israelita Eva Illouz). Infelizmente.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

As declarações de Macron

As declarações do Presidente francês, Emmanuel Macron (aqui), são mais um sinal de que a situação política na Europa é de profunda instabilidade. Ao admitir como possibilidade efectiva o envio de tropas europeias para combater na Ucrânia, Macron está a assumir, de forma nítida, que o problema da Ucrânia não diz respeito apenas aos ucranianos, mas é um problema da segurança europeia. A posição do Presidente francês significa que existe nos parceiros europeus, ou em parte substancial deles, a convicção de que a guerra na Ucrânia é apenas o primeiro passo para uma tentativa de destruição da União Europeia e de dominação da Europa. As múltiplas declarações de altas patentes militares, de diversos países europeus, bem como informações provenientes de diversos serviços secretos parecem confirmá-lo. A ideia de uma paz perpétua na Europa, depois  do trauma de duas guerras mundiais no século passado, está a esboroar-se a cada dia que passa.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Um aviso para os incautos

Hoje, Passos Coelho entra na campanha da AD. O antigo primeiro-ministro tem boa recepção na direita. O seu apoio a Montenegro pode ajudar a segurar votos que podem ir tanto para o Chega como para a Iniciativa Liberal. Contudo, os mais incautos deverão pensar o que significa este apoio. E um dos seus sentidos é que a AD de Luís Montenegro e Nuno Melo não tem uma intencionalidade política diferente daquela que tinha a coligação de Passos Coelho e Paulo Portas. Por detrás da retórica sobre o choque fiscal, emergem de novo soluções que vão pôr em causa as classes médias e populares, vão pôr em causa as pensões. Passos Coelho representa o radicalismo liberal e a sua presença na campanha, para ajudar a não perder votos para os radicais de direita, é um aviso para os incautos de memória curta.

domingo, 25 de fevereiro de 2024

A ilusão anti-elitista

A investigação de Miguel Carvalho, A grande "família" do Chega, no Público, mostra que Portugal está alinhado no que se passa por outras paragens, onde a extrema-direita e o populismo grassam, infestando as democracias liberais. Estes movimentos, com o trumpismo norteamericano em lugar de destaque, têm todos eles uma retórica anti-elitista. Esta retórica parece ser de grande eficácia junto de parte da população em situação mais vulnerável. Ora, quando se vai ver os grandes apoios a este tipo de organização política, os apoios que a permitem crescer, eles vêm precisamente dessas elites, que têm dois traços comuns fundamentais, o conservadorismo social e o ultraliberalismo económico. O primeiro significa o desejo de se intrometerem, em nome das suas crenças e valores, nas liberdades dos outros, diminuindo-as. O segundo representa a possibilidade de se libertarem das poucas regras que protegem, na economia de mercado, aqueles que vivem do trabalho que prestam a terceiros. A consequência disso será não apenas um reforço patrimonial e simbólico das elites - uma velhas, vindas do salazarismo, outras novas -, mas um passo decisivo para uma maior degradação da vida de muitos daqueles que procuram no Chega a salvação da sua situação existencial. 

sábado, 24 de fevereiro de 2024

A poligrafização da política

Tornou-se um topos da análise política feita na comunicação social o recurso à confrontação entre o que dizem os actores políticos e a realidade, numa espécie de recurso a detectores de mentiras. Este exercício poligráfico é interessante, mas é duvidoso que tenha algum efeito na consciência dos cidadãos. Ninguém muda de intenção de voto porque os políticos do seu lado dizem mentiras. Os outros também dizem, pensará. E mentiras por mentiras, prefiro as do meu lado. Há casos mesmo que, como acontece nos movimentos populistas e de extrema-direita, mentir é uma condição pelo menos necessária para ser apreciado como líder. A questão não está no facto de termos entrado na era da pós-verdade, mas antes no caso do que está em jogo na política não é a verdade, mas o poder, que os meus cheguem ao poder. A verdade é meramente instrumental na política de hoje, como sempre o foi. Quando se acusa o adversário de mentir não é por amor à verdade, mas para tentar, talvez em vão, obter uma vantagem política. Por isso, as campanhas contra a desinformação têm tão poucos resultados, como o têm os múltiplos polígrafos que por aí existem.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

As touradas do PAN

Não se discute aqui a bondade ou maldade moral das touradas, mas o exercício de mau gosto e a péssima literatura. Na sua cruzada contra as touradas, o PAN decidiu converter-se ao engraçadismo, influenciado pelo êxito que a extrema-direita tem tido com essa triste moda. Colocou no Campo Pequeno um outdoor com os seguintes dizeres: Touradas só na cama / E com consentimento. Isto no lado esquerdo. No lado direito há uma cama de casal meio desfeita e, no canto superior direito, o símbolo do partido. Deixemos, contudo, o mau gosto do recurso a uma sugestão da sexualidade, eventualmente exuberante. Demoremo-nos na metáfora. Os parceiros sexuais devem consentir em que tipo de tourada? À portuguesa ou à espanhola? Se for à espanhola, o que fizer de toureiro terá o direito de matar o que faz de touro, por certo. Mas se a inclinação literária do PAN for nacionalista, será antes uma tourada à portuguesa. Na cama, o toureiro, apeado ou a cavalo, poderá espetar no que fizer de touro as bandarilhas, mas este só morre nos curros. Parece que para o PAN o problema das touradas reside no sofrimento animal, mas esse sofrimento não será problemático numa cama com seres humanos, desde que consentido, talvez uma antecipação da eutanásia livre. Uma coisa é certa, no PAN não abunda talento literário nem boas relações com a tropologia.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

O BE e a política externa

Entre várias outras medidas de política externa, o Bloco de Esquerda propõem, no seu programa eleitoral, a saída de Portugal da NATO e a defesa do desarmamento negociado e multilateral. O que o BE não explica é como Portugal, fora da NATO, se poderia defender caso fosse atacado e isso é uma possibilidade real nos dias de hoje. Certamente, os dirigentes bloquistas diriam que defendem um desarmamento negociado e multilateral. Esta seria a resposta, tendo em conta o que se escreve no programa eleitoral, mas isso, na verdade, não responde ao problema da defesa do país em caso de necessidade. 

Ora, por muito que Portugal pudesse defender semelhante posição, isso em nada alteraria a realidade geopolítica, apenas enfraqueceria Portugal. Não depende de Portugal a existência de potências inimigas que não se querem desarmar, antes pelo contrário. Não depende de Portugal nem da União Europeia, o facto de haver uma ameaça muito séria à segurança dos povos europeus. Defender o desarmamento negociado multilateral é defender rigorosamente nada, um exercício retórico que cobre uma posição absolutamente irrealista, fundado num dogmatismo ideológico que torna o BE incapaz de analisar a realidade geopolítica. Na prática, seria uma capitulação do país.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

A questão dos 2%

Num artigo no jornal Público (aqui), Nuno Severiano Teixeira, antigo ministro da Administração Interna e da Defesa Nacional, faz uma análise da situação geopolítica da Europa e o problema colocado por uma eventual eleição de Donald Trump. Salienta, a certa altura, que apenas dois partidos se comprometem com os 2% de gastos na área da defesa, tal como foi acordado pela NATO, na cimeira de Gales, em 2014. Esses partidos são o Chega e o Partido Socialista. A única surpresa é a tergiversação da AD perante esse objetivo de reforço da defesa nacional. Não terá percebido a realidade onde vivemos? Chegou a altura de explicar aos portugueses que a paz na Europa não é um bem eterno e que a possibilidade de uma guerra onde Portugal se veja envolvido está longe de ser uma distante fantasia distópica. Também se deve explicar que a eventual implosão da NATO, por iniciativa dos EUA, uma possibilidade real com a eleição de Donald Trump, não apenas nos deixará muito mais vulneráveis aos inimigos actuais, como gerará condições para a emergência de novos inimigos, mesmo entre aqueles que hoje estão no campo dos amigos. A questão dos 2% é fundamental, mas não basta por si só. Os problemas militares não dizem respeito apenas aos militares, mas a todos nós.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

O gesto de Ana Abrunhosa

Ana Abrunhosa, ministra do actual governo e candidata socialista por Coimbra, abandonou uma mesa redonda com diversos partidos políticos depois de ouvir as declarações de António Pinto Pereira, candidato pelo Chega. As declarações visaram a comunidade de imigrantes e as mulheres (aqui). Não sei se o gesto da ainda ministra tem algum relevo eleitoral. Presumo que não terá. Contudo, tem um efeito moral. Separa as águas entre aqueles que se reconhecem num certo tipo de cultura e civilização e os que estão desejosos de a fazer implodir. Quando André Ventura, ainda militante do PSD, se candidatou em Loures, com o apoio do seu partido e do CDS, e começou a ensaiar a sua deriva xenófoba e racista, o CDS retirou-lhe o apoio, mas Pedro Passos Coelho, então líder do PSD, não o fez. De certo modo, Passos Coelho tornou-se cúmplice daquilo que veio depois e que está a degradar não apenas a vida política, mas a vida social. Sempre houve, entre nós racismo e xenofobia, mas tinham vergonha de se manifestar. O Chega representou a emancipação desse discurso odioso da tutela da boa educação e da vida civilizada.