domingo, 4 de agosto de 2024

Uma pugilista, política e ciência

Um sinal claro de que a política, tal como ela foi entendida durante muitos anos, mudou é o debate em torno da pugilista argelina Imane Khelif. A dimensão política do caso não se refere tanto à posição da Argélia em defesa da sua atleta, mas ao debate nas redes sociais - a voz do povo - em torno da identidade efectiva de Imane Khelif. É um debate que divide conservadores e liberais, estando parte significativa dos primeiros, na verdade os mais ruidosos e empolgados, absolutamente certos de que a atleta é transgénero. Até ao momento não existe qualquer prova de que a atleta o seja, mas provas são coisas que pouco contam para quem tem certezas absolutas.

Plausivelmente, podemos pensar que a tipificação idealizada do masculino e do feminino seja isso mesmo, uma idealização. Talvez o masculino e o feminino façam parte da mesma linha, na qual se poderão encontrar diferentes modalidades de ser homem ou mulher, havendo homens mais próximos de serem mulheres e mulheres mais próximas de serem homens. Isto, porém, é um representação impressionista e a questão é, na verdade, de natureza científica. Que ela se tenha tornado uma questão política - e uma questão política de primeira grandeza no debate social - significa que o conhecimento nos traz problemas muito desagradáveis para as certezas que nos guiavam.

Desde o momento que o homem começou a desenvolver mecanismos de investigação científica fundados na observação da realidade, a visão que o homem comum tinha do cosmos, da natureza e de si mesmo tem sido mostrada como falsa. Enquanto a investigação tocou nas concepções do universo, na compreensão da natureza, o homem comum - aquele que, nos dias de hoje, nas redes sociais, sabe tudo - não se sentiu ameaçado. Quando, porém, o conhecimento começa a desencantar as representações míticas que se tem da natureza humana, esse homem comum sente-se em pânico e reage com violência, tanto verbal como física.

Desde o século XVII, embora aqui com alguns limites, a ciência tem vivido em relativa tranquilidade. Mesmo o facto de ter permitido produzir a bomba atómica não assustou o homem comum. Quando ela se centra na natureza humana, quando olha para ela como um qualquer outro objecto de investigação, esse homem comum reage e esta reacção ganha contornos políticos. Ao politizar-se aquilo que é da ordem do conhecimento, caminha-se para o momento em que a ciência, toda ela, pode ser posta em causa. O medo que o homem tem de descobrir qual a sua verdadeira natureza e a impossibilidade de suportar a sua realidade, ao transformar-se em programa político, pode trazer ao mundo um novo período de perseguição da ciência e do conhecimento.

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