segunda-feira, 29 de abril de 2024

A dominação da mulher

O texto de Maria Durães, no Público (aqui) sobre os incels, isto é, homens involuntariamente celibatários é interessante a vários títulos. A cultura misógina partilhada e o despeito pela conquista da igualdade está a tomar uma dimensão política, com os indivíduos e grupos mais ou menos informais aproximando-se da extrema-direita. A questão feminina tem sido vista, no mundo ocidental, a partir de uma perspectiva ancorada nos ideais da liberdade e da igualdade provenientes da Revolução Francesa. Contudo, em outros universos civilizacionais a questão é ainda a do direito do homem exercer dominação - inclusive, pela violência - sobre as mulheres. Também no Ocidente, parte - e não pouco significativa - do poder de atracção da extrema-direita está na questão feminina. Não no sentido da emancipação plena da mulher, mas do retorno de estruturas de dominação, as quais permitiriam que os homens pudessem pôr fim ao processo de libertação das mulheres e voltassem a impor-lhe a sua vontade. A questão feminina, no pior dos sentidos da palavra, vai ser cada vez mais um tema na agenda dos radicais e extremistas de direita, em concomitância com o crescimento do sentimento de impotência dos homens perante os seus fracassos - onde se incluem os libidinais - e os êxitos das mulheres. 

domingo, 28 de abril de 2024

AD, política demográfica e imigração ponderada

Paulo Rangel, actual ministro dos Negócios Estrangeiros, propôs aos candidatos da AD para as eleições europeias que defendessem uma política demográfica comum e uma imigração ponderada (aqui). O centro direita parece estar a começar a compreender um problema que a esquerda ainda não entendeu. Trata-se de que a política visa, em primeiro lugar, assegurar a persistência no tempo de uma comunidade soberana. O impulso político não é, primeiramente, um impulso moral, mas digamos um impulso ontológico, ou na linguagem política dos dias de hoje um impulso existencial.

A esquerda continua afectada pela influência antipolítica do pensamento marxiano. O Estado e a política eram vistos como o resultado de um conflito de interesses insanável - a luta de classes - e o objectivo seria liquidar, a médio prazo, o próprio Estado, que é considerado a estrutura de dominação de uma classe sobre outra. Esta visão, proveniente do século XIX, lançou uma sombra até aos nossos dias, onde a política, para além da gestão do conflito entre classes, retornou em força. E retornou centrada naquilo a que podemos chamar a sua essência: assegurar, como se disse, a persistência no tempo de uma comunidade soberana.

Há duas coisas que parecem estar a atormentar parte substancial dos eleitorados europeus e que estão ligadas entre si e se conectam com a essência da política. Isso tem sido explorado, não sem êxito, pelas extremas direitas e pelas direitas radicais, através da questão da identidade das comunidades políticas e da sua soberania. A baixa natalidade de muitos povos europeus e a presença de fortes contingentes de imigrantes conduzem a uma percepção de que a comunidade soberana que a política deveria defender está em perigo. Em perigo porque não se reproduz o suficiente e em perigo porque está a ser infiltrada por culturas diferentes e que são sentidas como incompatíveis com a cultura original, digamos assim, dos povos que acolhem essa imigração.

Quando se trata de política não é relevante se as percepções são verdadeiras ou são falsas. O importante é o grau de disseminação dessas percepções na comunidade e, por isso, no eleitorado. O que a generalidade dos partidos democráticos tem feito é contrapor a esta questão eminentemente política respostas de ordem moral, as quais se manifestam em acusações de racismo e de xenofobia. O problema é que estas acusações não têm poder de penetrar no eleitorado e alterar o seu sentido de voto. Pelo contrário, estão a entregar os eleitores à radicalidade da direita racista e xenófoba. É altura de os partidos democráticos olharem para o problema de frente, perceberem que a política não trata apenas, nem essencialmente, da questão da distribuição dos rendimentos, e perceber por que razões o radicalismo de direita está a incendiar os eleitorados até há poucos anos tão moderados.

sábado, 27 de abril de 2024

Deixar a História aos historiadores

A pior coisa que se pode fazer é trazer a história para a política, pois o que chega nunca é a História, enquanto visão do passado fundada na investigação racional, mas a colecção de mitos que visam incendiar imaginações e atear os ânimos, uma invenção retórica para efeitos conflituais. A história no discurso político é, por norma, a anunciação do advento da barbaridade, da divisão entre amigos e inimigos e o que daí vem. 

sexta-feira, 26 de abril de 2024

Um Presidente à beira do abismo

Marcelo Rebelo de Sousa tornou-se um problema para as instituições. Ele que deveria ser o seu garante parece apostado em dinamitá-las. As suas palavras no jantar com os jornalistas estrangeiros são um exemplo disso. Se as considerações sobre os primeiros-ministros não passam de um fait-divers inócuo, apesar de desagradável, as meditações sobre o passado colonial a que se entregou em voz alta foram de grande gravidade. Não porque representem um traição, mas porque assuntos de grande delicadeza política não são tratados na praça pública. Marcelo Rebelo de Sousa não sabia que estava a dar combustível à retórica pseudo-patriótica da extrema-direita? Um Presidente à beira do abismo.

quarta-feira, 24 de abril de 2024

A cultura populista em Portugal

O populismo parece disseminado por eleitores de todo o espectro partidário. É o que mostra o projecto de investigação 50 anos de Democracia em Portugal: Aspirações e Práticas Democráticas - Continuidades e Mudanças Geracionais, do ISCSP/CAPP (aqui e aqui). Generalizou-se uma percepção da realidade política extremamente perigosa. Essa percepção conduz a atitudes de rejeição do sistema político e a um antielitismo feroz, duas atitudes cavalgadas pela extrema-direita. Nessa rejeição, manifesta-se uma velha cultura que teve o seu fundamento na Estado Novo, mas que, depois da abalada pela transição à democracia, foi, paulatinamente reganhando fôlego. 

Quase 87% dos portugueses pensam que os políticos e os partidos defendem os seus privilégios. Cerca de 82% julga que os políticos são desonestos e corruptos e mais de 81% afirmam que os partidos falam muito, mas fazem muito pouco. Se quisermos falar de uma vitória póstuma do salazarismo, estas percepções sobre os partidos político e os políticos democráticos são um prova elucidativa. É uma visão negra dos instrumentos democráticos. Além de negra, ela é falsa e esta falsificação resulta de vários factores. 

Em primeiro lugar, provém de uma generalização abusiva em que se passa de casos específicos para uma generalização alimentada pelo furor da comunicação social. Em segundo lugar, origina-se numa inveja perante aqueles que ocupam os cargos de poder e são pessoas iguais a todas as outras, pessoas que não têm uma aura de sacralidade que as retira dos olhares públicos, como acontecia com os políticos da ditadura, protegidos pela censura e pela polícia política. Em terceiro lugar, pela cultura antidemocrática e antipartidária proveniente, como se disse, do Estado Novo e fomentada por aqueles que nunca se resignaram à liberdade.

Contudo os dados mais preocupantes são dados por dois elementos do estudo. Quase 85% dos portugueses acham que os políticos devem seguir o povo e quase 70% defendem que as decisões importantes deveriam ser tomadas por cidadãos (através de referendos). A cerne da democracia liberal é a representatividade. E ela é representativa não apenas por uma questão prática da impossibilidade de envolver todos os cidadãos na trabalho legislativo e executivo, mas, fundamentalmente, para evitar que a irracionalidade emotiva e a exploração demagógica arrastem a comunidade para a tomada de posições irracionais e odiosas.

As democracias liberais são demo-aristocracias, nas quais as elites políticas (a aristocracia das democracias modernas) são abertas, podendo qualquer um fazer carreira política. Qualquer um fazer parte das elites políticas, segundo o seu talento, é um dos traços democráticos do sistema. O outro é a escolha das elites governativas. Esta depende do voto popular. As democracias liberais existem não apenas para evitar o conflito armado entre elites rivais, mas também para evitar que os políticos sigam o povo, quando este é movido pelos instintos cegos e por paixões irracionais. Que os portugueses não o entendam é um dado muito preocupante.

terça-feira, 23 de abril de 2024

O caso Sebastião Bugalho

É possível que Sebastião Bugalho venha a ser um talentoso político e um futuro líder da direita democrática. É possível que tenha capacidade de penetrar no eleitorado de direita que, nos últimos tempos, se tem inclinado para o Chega. São possibilidades que o futuro poderá ou não confirmar, mas há uma coisa que é clara. Sebastião Bugalho fez até agora parte de uma rede de comentadores - em aparência independentes - que construíram uma narrativa da realidade nada independente. Pelo contrário, uma narrativa enviesada com o único foco de fazer a direita chegar ao poder. Se fosse preciso apresentar provas, a cooptação de Sebastião Bugalho para cabeça de lista da AD para as eleições europeias bastava. O caso Sebastião Bugalho é um sintoma do enviesamento da comunicação social portuguesa que está a perverter o jogo democrático.

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Política, percepções e factos

A política, muitas vezes, faz-se mais de percepções do que de factos. Uma das percepções que a direita tem passado e com um sucesso razoável é a incapacidade de Portugal crescer. As direitas radicais propagam que Portugal é mesmo um país em retrocesso com o 25 de Abril. O que mostram os factos? Segundo o Maddison Project, que reúne informação de longo prazo até 2018, Portugal foi o quatro país em que os rendimentos médios, na Europa Ocidental, mais cresceram desde 1974. Também os dados do World Economic Outlook do FMI, com informação do PIB per capita em paridades de poder de compra, desde 1980 até ao presente, mostram que Portugal está entre os cinco países que mais cresceram nesse período (ver aqui). Os factos estão longe das narrativas que as direitas, de modo diferenciado, põem a circular. Ora do ponto de vista político, é mais importante a percepção do que os factos. Mesmo que a nossa economia seja das que tem, desde 1974, um dos melhores desempenhos na Europa Ocidental, não é isso que está na mente de muitas pessoas, senão da maioria. Os resultados das últimas eleições mostraram, se fosse necessário mostrar, que as percepções em política tem mais impacto eleitoral do que os factos.

domingo, 21 de abril de 2024

CDS, equívoco e desejo frustrado

Um equívoco e um desejo em vias de frustração. Depois de renascer, Nuno Melo quer o CDS a reconquistar a direita que perdeu, assim titula o Público a notícia sobre o congresso do CDS. Um equívoco porque o CDS não renasceu. O PSD tirou-o do jazigo e exibe-o como D. Pedro exibiu Inês, como rainha morta, mas com mais cálculo de interesses e menos, muito menos, amor. Quanto ao desejo do líder do CDS de reconquistar a direita perdida não passa de um desejo cujo objecto não está disponível para responder. 

O CDS foi um partido em que entre os seus dirigentes e quadros e os seus eleitores sempre houve uma diferença significativa. Por norma, os dirigentes - muitos deles notáveis - e quadros cultivaram e interiorizaram um apreço pela democracia liberal, mas o povo que votava CDS estava longe de se rever nesse apreço. Encontrou em André Ventura o homem forte - é assim que ele se imagina e é assim que os devotos o imaginam, se isso corresponde à realidade é outra coisa - que andava à procura. O mercado que o CDS quer reocupar está ocupado e com a clientela satisfeita.

sábado, 20 de abril de 2024

A direita antes e depois do 25 de Abril

Vi um excerto de uma entrevista a Miguel Caetano, um dos filhos de Marcello Caetano, o Presidente do Conselho deposto em 25 de Abril. Miguel Caetano diz claramente que o pai não era um democrata. A transição à democracia que poderia ter sido iniciada com a chamada Primavera marcelista não existiu não apenas por causa da guerra colonial, mas também porque a direita portuguesa, e Marcello Caetano era um símbolo dessa direita, não tinha propensão democrática. Não a incomodava as perseguições políticas, a existência de censura e de uma polícia política, a ausência de liberdades civis e políticas. 

O 25 de Abril tornou possível a emergência de uma direita democrática, preocupada com as liberdades. Perturbante, porém, é o facto dessa direita, agora no governo, estar em refluxo e a velha direita autoritária ter encontrado um modo de expressão e de propaganda constante, com uma postura, porém, muito diferente da postura dos dois Presidentes do Conselho da ditadura, Salazar e Caetano. Nenhum deles era um populista. Pelo contrário, tinham a velha gravitas dos antigos homens de Estado, enquanto o actual condottiero dessa direita não democrática é o contrário de tudo isso, uma figura burlesca que parece representar não uma tragédia, mas uma farsa.

sexta-feira, 19 de abril de 2024

O Livre e a escolha de candidatos.

O Livre tem um método de escolher as candidaturas que parece merecer muitos aplausos. Organiza umas eleições internas, denominadas vulgarmente por primárias, nas quais podem participar militantes e simpatizantes. As coisas, todavia, não correm sempre bem. O primeiro caso foi a escolha de Joacine Katar-Moreira para encabeçar a lista de candidatos ao parlamento pelo círculo de Lisboa. Foi eleita, mas logo entrou em ruptura com o partido e deixou, durante a legislatura, o Livre sem representação parlamentar. Agora, parece ter havido uma estranha votação num dos candidatos à liderança da lista do Livre ao parlamento Europeu. 

São demasiados casos para validar este tipo de escolha das candidaturas. Sabe-se, perfeitamente, que pode haver uma espécie de sindicato de votos a favor de um candidato, pode haver penetração de elementos estranhos aos ideais do partido para escolher um candidato problemático, etc. A democracia é feita de partidos. Estes devem escolher os seus candidatos de acordo com os objectivos do partido no momento eleitoral. Se se pretendem abrir aos simpatizantes, então devem ter regras com algum rigor para que essa abertura não acabe por jogar contra o próprio partido. Não temos a tradição americana de primárias e a falta dessa tradição é uma razão aceitável para continuar a não a utilizar.

quinta-feira, 18 de abril de 2024

A democracia e os portugueses

Num estudo agora publicado do ISCSP, 87% dos portugueses afirmam preferir a democracia representativa. O resultado parece, à primeira vista, bom. Contudo as alternativas também não obtiveram um mau score. Um governo de especialistas seria bem recebido por 70% e um governo autoritário de um homem forte, sem recurso a eleições, por 47%. Isto significa que a democracia é preferível, mas, se ela acabar, uma parte substancial dos portugueses apenas encolherá os ombros como se nada se passasse. Uma nota interessante é que 55% dos que veriam com bons olhos um governo autoritário não têm qualquer interesse pela política. Isto é um retrato da fragilidade da democracia portuguesa. A conjugação de uma população que aceita a democracia, mas que não lhe é fiel, com a despolitização de parte significativa dessa população são o caldo cultural que alimenta os sonhos autoritários da extrema-direita e dos candidatos a salvadores da pátria.

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Uma bravata ambiental, na Alemanha

O ministro alemão dos Transportes, um liberal, ameaçou proibir a circulação automóvel ao fim-de-semana. A causa reside no facto de a Alemanha não estar a conseguir cumprir as metas ambientais a que se comprometeu. Esta quase bravata é sintoma de um problema muito mais fundo. É o nosso estilo de vida que é problemático para o ambiente. Ora, nem os eleitores nem os eleitos estão interessados em enfrentar a situação de um modo consistente. Vamos assistir a ameaças deste género ou, então, à escolha pelos eleitores de forças políticas que neguem a responsabilidade humana - do estilo de vida da espécie humana - na degradação climática. Neste momento, pensar que os seres humanos se vão preocupar em preservar a casa comum pertence ao reino da fantasia. Preferem a negação da realidade à mudança que lhes é exigida. Os políticos ou se adaptam aos interesses dos eleitores, mesmo que perigosos para a possibilidade de haver um futuro para a espécie, ou serão trocados por outros que satisfaçam os desejos de quem vota. 

terça-feira, 16 de abril de 2024

O fim da vergonha e a falta de memória

Segundo Vicente Valentim, cientistas política na Universidade de Oxford, o crescimento da direita radical deve-se ao fim da vergonha (aqui). Havia nas sociedades europeias uma corrente desta direita mais radical, mas que se encontrava recalcada pela censura social. As ideias de extrema-direita tinham sido responsáveis pela segunda guerra mundial e essa visão política do mundo estava associada a factos traumáticos, os quais provocaram uma rejeição geral. Em Portugal, não participante nessa guerra, a direita radical estava conectada ao salazarismo e a uma ditadura que durou 48 anos.

O fenómeno real do fim da vergonha está conectado com um outro, o da erosão da memória colectiva. Os defensores de regimes autoritários - é isso que a direita radical pretende impor, em Portugal sob a elusiva designação de IV República - e totalitários perdem a vergonha porque as sociedades perderam a memória dos regimes que essa direita promoveu. Um dos equívocos que a perda da memória gera é o de olhar para essa direita como mais um concorrente ao poder num regime democrático-liberal. Ora, alguma memória permitiria perceber que essas forças apenas usam as liberdades para lhes acabar com elas. É possível que, paulatinamente, as democracias europeias estejam a caminhar para o seu fim. A memória não é eterna.

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Uma triste realidade

A vexata quaestio da descida do IRS tem pelo menos o mérito de nos dar uma imagem daquilo que os políticos pensam dos eleitores. Os votantes portugueses não escolhem projectos para o país, mas deixam-se comprar por uns euros a menos nos impostos. Esta triste realidade diz alguma coisa dos portugueses, por certo, mas também diz muito da qualidade das nossas elites políticas, da inconsistência da sua visão do mundo, da comunidade e da própria prática política. Não se trata de uma virtualidade do regime democrático, pois este também tem produzido lideranças consistentes, mas do paulatino abandono da política por quem poderia ter uma abordagem diferente e consistente do país. E aqui os portugueses têm responsabilidades. Por um ódio contumaz aos políticos, um ódio gerado no autoritarismo do Estado Novo, foram fechando portas e janelas por onde pessoas mais qualificadas e capazes poderiam entrar. O populismo cheganista não caiu dos céus, ele veio da terra e é a expressão da mediocridade que a cultura política de parte dos portugueses gerou ao longo de décadas.

domingo, 14 de abril de 2024

O abismo na ordem internacional

O ataque do Irão a Israel veio lançar mais confusão na situação internacional do que aquela que já havia. O alargamento do conflito no Médio-Oriente e a guerra na Ucrânia tornam a situação muito preocupante. A situação geopolítica está à beira do abismo e parece não faltar gente decidida a dar uma ajuda eficaz para que ela caia nesse abismo, que será sempre um abismo de violência, destruição e morte, onde existe um forte possibilidade de uma visão liberal da ordem internacional e as próprias democracias liberais sucumbirem por longo tempo.

sábado, 13 de abril de 2024

A falta de tracção da esquerda

Há dias António Costa terá dito faltou ao PS e ao PSD tracção, o que permitiu o crescimento do Chega. A frase foi repetida, por vezes, de forma irónica. Talvez o ex-primeiro-ministro quisesse dizer poder de atracção. Lembrei-me disto, ontem, ao ver à entrada do hospital local - aquela por onde entram e saem os profissionais hospitalares - uma delegação do PCP, com bandeirinhas do partido, a distribuir panfletos. Lembrei-me porque aquela espectáculo completamente anacrónico mostra que, na esquerda, não é apenas o PS que sofre de incapacidade de tracção (no sentido de arrastar os eleitores para si). Toda a esquerda se tornou, de um momento para o outro, anacrónica. As suas causas deixaram de mobilizar as novas gerações. São dirigidas à memória e não à expectativa e à esperança. Ou a esquerda percebe isto rapidamente, ou então está condenada, a curto prazo, à irrelevância.

sexta-feira, 12 de abril de 2024

E se a política fiscal falhar?

O actual governo propõe-se baixar impostos, aumentar a despesa e respeitar as apertadas regras europeias relativas aos défice das contas públicas. Confia que a baixa de impostos dinamize a economia e esta cresça de modo a que a receita fiscal pelo menos se mantenha. Se conseguir tudo isto terá o caminho aberto para uma reeleição no curto prazo. A questão, porém, é outra: quem vai pagar esta política, caso o impacto económico - e, consequentemente, a receita fiscal - for abaixo das expectativas governamentais? Era bom que o governo esclarecesse.

quinta-feira, 11 de abril de 2024

A cruzada de Passos Coelho

Pedro Passos Coelho surge como um cruzado em guerra contra os infiéis. Contudo, estes infiéis já não são a esquerda, mas aqueles que se reconhecem numa visão liberal dos comportamentos humanos. Os salamaleques de Ventura são o sinal dessa reorientação do antigo primeiro-ministro, que se está a tornar a nova esperança não do conservadorismo democrático, mas daquele que nunca conviveu bem com a democracia liberal. A intervenção de Passos Coelho no lançamento do livro Identidade e Família gerou uma clara ruptura na direita portuguesa. Nem a Iniciativa Liberal nem parte substancial do PSD se reconheceram nos valores que estão subjacentes a essa intervenção. Neste momento, parece que o grande objectivo de Passos Coelho é fazer bascular toda a direita para as portas de uma visão autoritária dos costumes e da sociedade, uma visão que tornaria indistinta a direita radical de Ventura e as direitas democráticas. Apesar da forte contestação surgida na militância da direita democrática, nada garante que Passos Coelho não ganhe a sua cruzada contra a vida liberal e as direitas democráticas.

quarta-feira, 10 de abril de 2024

O círculo nacional de compensação proposto pela IL

Segundo Mariana Leitão, líder da bancada da Iniciativa Liberal (IL), houve duas coisas que afastaram, nas negociações, IL e PSD. Por um lado a baixa de impostos. Por outro, o círculo de compensação. O círculo de compensação seria um círculo eleitoral nacional que permitiria converter em mandatos de deputados os votos que, nos círculos distritais, não elegem deputados. Seria uma forma de tornar mais fiel a representação das opções políticas dos portugueses e reduziria o enviesamento dos resultados eleitorais que o método de Hondt, aplicado a círculos distritais, introduz. O grande problema desta reivindicação da IL não é a sua justiça, mas o facto dos grandes partidos não estarem interessados nela. O PSD, o PS e agora o Chega são os beneficiários do actual método de conversão dos votos em deputados e não se espera de nenhum deles que aceite substituir uma vantagem, ainda que injusta, por uma situação de maior justiça na representação política. A questão central da acção política é a conquista e manutenção do poder e um método de conversão menos enviesado torna essa conquista e manutenção mais problemáticas.

terça-feira, 9 de abril de 2024

As liberdades individuais sob ataque

A polémica gerada pela a apresentação, por Passos Coelho, do livro Identidade e Família, uma obra colectiva gerada no seio da direita conservadora é um sintoma do ambiente em que se vive. A obra podia ser apenas a expressão de um ponto de vista sobre a sociedade. Ela é mais do que isso. É um contributo para um ambiente de tensão e que visa desgastar os valores liberais. Não ao nível económico, pois aí essa direita é completamente liberal, mas ao nível dos costumes. Nada disto seria problemático, caso se inserisse apenas num debate normal de ideias. Contudo, este movimento de guerra cultural visa restabelecer uma situação em que as opções dos indivíduos deverão regular-se por aquelas que um grupo pretende impor. A questão da família tradicional é emblemática. Segundo os autores, a família tradicional está sob ataque. A verdade é que ninguém é impedido de formar uma família tradicional, de viver a vida no âmbito dessa família. O que irrita estas pessoas é que essa família não seja obrigatória, que as pessoas sejam livres para escolher o modo como orientam a sua existência. Se a família tradicional passa por uma crise, isso não se deve a que ela esteja a ser atacada por quem quer que seja, mas porque as opções livres do indivíduos podem gerar essa crise. E é este o inimigo dessa direita. Já não é o comunismo ou o socialismo que incomoda essas forças, a não ser na fogo-de-artifício retórico, mas as liberdades individuais, o facto de que cada um possa orientar a sua vida sem o recurso a um tutor da sua consciência.

segunda-feira, 8 de abril de 2024

A sensatez do novo ministro da Educação

Parece ter-se tornado uma disputa política a questão da realização das Provas Finais do 9.º ano no formato digital. Questionado sobre a sua suspensão, como exige a IL, o novo ministro da Educação, Fernando Alexandre, deu uma resposta sensata. Aliás, duas. Afirmou que a digitalização é um processo em que o novo governo está empenhado e que, relativamente, às Provas deste ano, está a ouvir as partes e que tomará uma decisão após reflectir sobre a situação, de modo a garantir a equidade. Não embarcou nas cruzadas antidigitalização e está a fazer aquilo que qualquer decisor político deveria fazer. Reflectir, ouvindo as partes, antes de decidir. Parece um bom começo.

domingo, 7 de abril de 2024

A cólera e o temor dos tempos actuais

Teresa de Sousa, no Público de hoje, titula a sua crónica com um Estamos a viver a "normalização" da extrema-direita. Por "normalização" entende o crescimento dos partidos da extrema-direita e da direita radical um pouco por toda a Europa. Ora, esta constatação insere-se numa imensa literatura, jornalística e académica, sobre a ascensão do radicalismo de direita e da crise da democracia liberal. Talvez o melhor caminho para perceber o que se está a passar não seja focar o olhar na extrema-direita, mas na crise que atravessa a visão liberal tanto ao nível interno dos países democráticos como ao nível geopolítico, onde a ordem liberal está a ser consistentemente desafiada pelos regimes autoritários. 

A extrema-direita e a direita radical crescem porque as políticas liberais - nos seus diversos níveis e não apenas no económico - não estão a responder com eficácia às perturbações sentidas pela comunidade política. Se se definir como objecto da política a gestão da autoprodução contínua de uma comunidade soberana, percebe-se que aquilo que está a assustar as pessoas e as leva para os braços dos radicais de direita é o temor não apenas da perda de soberania da sua comunidade política, mas também a sensação de que essa comunidade está a perder a sua identidade e, por isso, a perder a continuidade, isto é, a morrer. E não importa, do ponto de vista político, se a essas identidades são imaginárias ou se essa perda é, também ela, imaginária.

O cosmopolitismo liberal fundado numa ideia de sociedade resultante de um contrato racional entre indivíduos, tradição que vai de Locke a Kant e aos liberais contemporâneos, está a ser incapaz de lidar com as pulsões comunitárias fundadas na história e na tradição, nas mitologias identitárias que alicerçam as comunidades políticas e que tinham a sua expressão política forte na figura do Estado-Nação. Nos anos noventa do século passado e no início deste, havia uma imensa literatura sobre a morte do Estado-Nação, nomeadamente, o europeu. Ora, talvez a notícia dessa morte fosse exagerada. O crescimento da extrema-direita e da direita radical parece a modalidade que tomou a resistência do Estado-Nação ao anúncio do seu desparecimento. Sem perceber isto, o projecto liberal, tomado na sua amplitude, será incapaz de lidar com a situação e perceber aquilo que nele está assustar as pessoas, levando-as a fazer escolhas que acabarão por deitar fora o bebé com a água do banho.

sábado, 6 de abril de 2024

O 25 de Abril e as adversativas da direita

Três partidos da direita - IL, CDS e Chega -  pretendem incluir o 25 de Novembro nas comemorações do cinquentenário do  25 de Abril.  Isto mostra, mais uma vez, que pelo menos uma parte da direita portuguesa tem dificuldades em lidar com a ruptura trazida pelo 25 de Abril de 1974 e o subterfúgio do 25 de Novembro é uma forma de colocar reticências a essa transição. Contudo, o 25 de Abril representa apenas o derrube de um regime autoritário, no qual qualquer democrata se pode reconhecer sem ter de usar adversativas. 

O poema de Sophia de Mello Breyner Andresen diz o essencial do que foi o 25 de Abril e nesse dizer não se vê necessidade de colocar o 25 de Novembro, nem, já agora, o 28 de Setembro e o 11 de Março: Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo. O 25 de Abril é apenas esse dia inicial inteiro e limpo. Depois, as várias partes (e foram mesmo várias e não apenas uma) foram-no manchando, cada uma à sua maneira, mas essas manchas são a história. 

Há, contudo, uma clara razão para que parte substancial da direita necessite de adversativas, precise do mas do 25 de Novembro (o qual, e não por acaso, foi obra da esquerda moderada). No dia 25 de Abril, a direita política está toda ao lado da ditadura. Há algumas raras e muito honrosas excepções, mas o grosso das hostes políticas da direita portuguesa não sentia qualquer atracção por um regime democrático-liberal, apoiava a política colonial, a existência de censura e polícia política, a perseguição dos oposicionistas, não se mostrava sensível à existência de pluralismo político e por aí fora. É este o problema que está na base do culto do 25 de Novembro por parte da direita, culto que, por acaso, não é partilhado por aqueles que fizeram os 25 de Novembro.

sexta-feira, 5 de abril de 2024

A irrupção do irracional na política

O primatologista Frans Waal disse, referindo-se ao seres humanos, somos parte natureza, parte cultura, em vez de um todo bem integrado. A moralidade humana é apresentada como uma fina camada sob a qual fervem paixões anti-sociais, amorais, egoístas. É impossível compreender os actuais comportamentos políticos sem ter em consideração aquilo que nós somos. A cena política foi dominada nas últimas décadas, desde o fim da segunda guerra mundial, por duas concepções políticas rivais, que se combinaram em diversos matizes, mas ambas fortemente ancoradas na moralidade. Tanta as concepções liberais como as socialistas são, antes de concepções políticas, concepções morais. Ora, assiste-se, desde o início deste milénio, à irrupção abrupta na vida política das paixões amorais, egoístas - tanto individuais como colectivas - e anti-sociais. A capacidade da extrema-direita em atrair o eleitorado está no facto de ela conseguir desencadear paixões que as moralidades racionais apolíneas, presentes no liberalismo e no socialismo, já não conseguem suster. Como explicar o poder de atracção que uma figura como Donald Trump exerce em parte muito significativa do eleitorado? O que se está a passar é o estilhaçar dessa fina camada moral sob a qual fervem as nossas paixões. Não é a primeira vez que isso sucede na história, e, por norma, os resultados não são recomendáveis. O filósofo norte-americano John Rawls pensava que seria possível que concepções abrangentes de vida (morais, religiosas ou filosóficas) razoáveis, mas incompatíveis, convivessem numa sociedade democrática baseada em princípios de justiça imparciais. O problema, porém, é diferente nos nossos dias, pois emergiram nas sociedades ocidentais concepções abrangente irrazoáveis, de forte pendor dionisíaco, que não estão dispostas a qualquer consenso.

quinta-feira, 4 de abril de 2024

O drama dos logótipos

O drama dos logótipos governamentais é revelador do ambiente político em que vivemos. O importante não é que um governo tenha adoptado um logótipo de índole abstraccionista e o seguinte o tenha substituído por um mais figurativo, digamos assim. O importante foi a guerra, baseada numa hermenêutica simbólica canhestra, que o logótipo abstraccionista desencadeou, tanto por motivos nacionalistas (a ideia de que estavam a suprimir os símbolos da nação) como por motivos estéticos. Essa guerra é apenas um sintoma da polarização política em que os sectores mais radicais da direita estão apostados. Não desperdiçam qualquer oportunidade para traçar clivagens, para valorizar o que é irrelevante (um logótipo de um governo não é um símbolo nacional, mas uma imagem promocional) e, com isso, tentar destruir as instituições democráticas, a vida civilizada baseada na convivência entre pessoas com perspectivas diferentes sobre o mundo e a vida. Por detrás de tudo isto, existe uma cultura de profunda intolerância que se agita e procura, a todo custo, impor-se. Trabalha por etapas e já deu alguns passos significativos. Não, amanhã não vamos ter uma ditadura, mas caminhamos para uma democracia iliberal e um estado autoritário, a médio prazo.

quarta-feira, 3 de abril de 2024

PSD e PS, que a morte seja do outro

O essencial do discurso de Luís Montenegro, na tomada de posse, resume-se à definição de uma estratégia de campanha eleitoral e, ao mesmo tempo, de sobrevivência partidária. Tentar passar o ónus da governabilidade para quem está na oposição nada tem que ver com um esforço para chegar a acordo com os socialistas, mas uma tentativa de fazer crescer o eleitorado próprio à custa do eleitorado moderado do PS. A resposta dos socialistas será da mesma ordem, puro cálculo para não serem devorados. O sistema partidário português está a aprender a lidar com o aparecimento em força da extrema-direita e os dois partidos do centro estão convencidos de que um deles acabará por morrer. Cada um calculará o caminho de modo a que a morte seja do outro. Em França, morreram ambos.

terça-feira, 2 de abril de 2024

Lançar o caos

No Público, João Miguel Tavares chama a atenção para um dos pontos do programa do Chega que é, efectivamente, muito perigoso. Trata-se de "Reconhecer aos membros das forças de segurança o direito à filiação partidária, bem como o direito à greve". Só um partido que esteja interessado em destruir as instituições democráticas proporia semelhantes direitos. Imagine-se uma polícia atravessada por conflitos partidários. Com a polarização crescente, os deveres de lealdade para com o país e respectiva governação facilmente se transfeririam para os partidos políticos. Ora, as forças de segurança, bem como as de defesa, assim como as instituições judiciais, devem fazer parte de uma estrutura de consenso alargado não partidário, consenso esse que permite a dissensão político-partidária. Partidarizar as forças de segurança é uma estratégia para lançar o caos no país, pois destruiria um dos pilares fundamentais do consenso em que repousa qualquer democracia.

segunda-feira, 1 de abril de 2024

Serviço Militar e Serviço de Cidadania

Começou a discussão pública do retorno do Serviço Militar Obrigatório. Uma visão alternativa é apresentada pelo Major-General João Vieira Borges, do Observatório de Segurança e Defesa, da SEDES, o Serviço Nacional de Cidadania (aqui). Uma das fontes inspiradoras é a Áustria onde os jovens têm de dar entre seis meses a um ano da sua vida à comunidade, seja na saúde, na educação, nas florestas ou no serviço militar, tendo alguma remuneração. 

Estamos perante dois problemas distintos. Por um lado, a necessidade que Portugal, como os outros países europeus, tem de dispor de Forças Armadas modernizadas, eficientes e prontas para intervir num mundo que se está a tornar hostil. O outro problema prende-se com o estabelecimento de um dever para com a comunidade, uma forma de retribuição daquilo que ela dá a cada um e um fomento da ligação de cidadania ao todo nacional.

O Serviço Militar Obrigatório deve estar relacionado com a avaliação da sua eficiência na Defesa Nacional e não ser o produto de visões ideológicas. Caso seja útil, deverá voltar a ser introduzido. Caso crie mais problemas do que aqueles que resolve, o melhor é não o reintroduzir. A decisão deve ser sempre tomada a partir da avaliação da sua eficiência para a defesa nacional.

Um Serviço Nacional de Cidadania é um ideia interessante, embora terá, previsivelmente, contra ela aqueles que o terão de prestar. As novas gerações, que se têm mostrado muito permeáveis ao discurso nacionalista radical, teriam aqui uma oportunidade para mostrar o seu apego aos valores nacionais, um apego que não derivaria da vida nas redes sociais, mas de uma acção continuada, durante um certo espaço de tempo, de serviço à comunidade.