domingo, 30 de junho de 2024

Ainda haverá tempo?

Tudo indica que a extrema-direita francesa ganhe as eleições de hoje. As projecções à boca das urnas apontam para 34%. O que impressiona em todo este processo é que a ameaça não é de agora. Há muito que se assiste ao paulatino crescimento destas forças, sem que isso tenho levado, no campo democrático, a uma reflexão profunda sobre as causas. Os programas dessas forças foram-se mantendo fiéis aos hábitos ideológicos dos diversos partidos, enquanto o eleitorado se foi afastando do campo democrático e se foi fidelizando ao discurso radical. Cada vez é menos provável que a França e, por certo, a Europa consigam resistir a esta avalanche do radicalismo de direita. Parece que já é tarde.

sábado, 29 de junho de 2024

União das esquerdas

Está na moda, depois de vários desaires eleitorais, a ideia de uma união das esquerdas, ideia essa que recebeu mais combustível com a constituição em França da Nova Frente Popular. Será possível? A ideia é plausível, por exemplo, na disputa das câmaras municipais de Lisboa e do Porto. Eventualmente, a de mais uma ou duas grandes, para a nossa  dimensão, capitais de distrito. 

Uma frente popular à portuguesa não parece possível, pois há uma diferença significativa entre os socialistas e os partidos à sua esquerda, com a excepção do Livre. As pessoas não se lembram ou não sabem, mas mesmo nas últimas duas eleições - se aquilo eram eleições - no regime anterior, em 1969 e em 1973, não existiu essa convergência das oposições. A oposição apresentou-se dividida entre a CEUD, de influência socialista, e a CDE, onde a influência maior era a do Partido Comunista.

Poderão existir novas geringonças, inclusive com governos pluripartidários, mas isso representará sempre um acordo em que nenhuma linha essencial dos compromissos portugueses com a NATO e o projecto europeu será posta em causa. Tal como aconteceu em 2015. Claro que o fim da NATO e a implosão da União Europeia alterará os dados do problema, entrando-se numa era de turbulência que trará novas formas de lidar com a realidade, mas não é isso que neste momento está em causa.

sexta-feira, 28 de junho de 2024

O amor-próprio de Biden

Pode a cegueira de um homem arrastar não apenas um país, mas um modo de vida - isto é, uma forma civilizacional - para a ruína? Talvez possa. A cegueira de Joe Biden pode arrastar os EUA para uma grave crise democrática e, no balanço, levar também a Europa ocidental consigo. É verdade que as crises não se podem personalizar e não são o efeito de uma pessoa, mas o problema é diferente.

Biden devia ter tido a humildade de reconhecer que a defesa da democracia nos EUA e no mundo necessitava de alguém mais jovem, mais pujante e mais capaz de lidar com a crise que enfrentamos. O problema de Biden não é ele ser o desencadeador da crise, mas de ser impotente para a enfrentar. 

Retirar-se no fim do mandato por não se recandidatar, seria uma saída gloriosa. Retirar-se, como tudo aponta, por derrota às mãos de Trump é uma humilhação inútil e um acto de egoísmo que nem mesmo a um político se poderá perdoar. Um amor-próprio, o de Biden, não apenas inútil, como perigoso.

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Senis e não seniores

Há um sintoma que parece confirmar que os EUA são uma potência em decadência. Não se trata da economia, nem das questões militares ou de relações internacionais. Uma grande potência que tem como únicos candidatos elegíveis para a sua Presidência Joe Biden e Donald Trump só pode estar muito doente. Uma coisa é ter candidatos seniores outra é apresentar candidatos a roçar a senilidade. Uma sociedade que se revê nessas candidaturas deixou de pensar no futuro.

quarta-feira, 26 de junho de 2024

Maus ventos de França

Os ventos vindos de França e que, saltando pelos Pirenéus, chegam até cá estão longe de ser os melhores. O centro político implodiu e o confronto eleitoral parece ser entre a extrema-direita do Rassemblement National de Marine Le Pen e a coligação que toma o nome de Nouveau Front Populaire, onde se coligam o centro esquerda, a esquerda e algum populismo de esquerda, cuja figura central é Jean-Luc Mélenchon e o seu partido La France Insoumise. O que se precisava neste hora era tudo menos um retorno ao ambiente político da primeira metade do século XX. O centro-direita, exterior ao partido de Macron, está completamente dividido, com gente a apoiar a extrema-direita, outros, como o ex-primeiro ministro Dominique Villepin, a abrir a porta para um apoio à Nouveau Front Populaire e outros sem saber o que fazer. O futuro da União Europeia começa a jogar-se em França no próximo domingo e os ventos não correm de feição.

terça-feira, 25 de junho de 2024

Para o que der e vier

Parece estar assegurada a escolha de António Costa para Presidente do Conselho Europeu (Público). Resta esperar pelas cenas dos próximos capítulos, como, por exemplo, o vazamento de mais escutas na comunicação social. O que está, há muito, em jogo é pura política, e em política vale tudo. Imaginemos que António Costa se lembra de apresentar a sua candidatura à Presidência da República. Não é plausível que o faça, ainda mais agora, mas, por certo, até lá o processo influencer estará aberto, para o que der e vier.

segunda-feira, 24 de junho de 2024

Psicopatas na política

João Carlos Melo, psiquiatra, é autor do livro Lugares escondidos da mente - do mais sombrio ao mais luminoso da mente humana. Fala de psicopatas (aqui). Descreve-os como pessoas malévolas, que não sentem culpa nem compaixão. Vivem entre nós, usando uma máscara, e algumas estão em lugares de poder. Diria que o poder - qualquer tipo de poder, mas, mais acentuadamente, o poder político - tem uma enorme capacidade de atracção deste tipo de personalidades. Basta olhar para a história, para os regimes políticos autoritários e totalitários e, de imediato, se descortina a presença de personalidades psicopatas.

A democracia liberal não é apenas uma forma de determinar quem governa sem passar pelo confronto violento. Representa também a possibilidade da avaliação moral dos candidatos ser um dado importante na escolha dos eleitores. No entanto, é apenas uma possibilidade e não uma condição necessária. Quanto maior é a polarização política, mais os eleitores se sentem atraídos por personagens políticas claramente psicopatas, as quais tudo fazem para intensificar essa polarização. Há uma sedução pelo mal que eles representam e que muitos eleitores esperam que façam cair sobre os do outro lado. 

Em política, o problema não reside apenas na existência de políticos de personalidade psicopata. Ele está, de forma mais acentuada, na atracção dos eleitores por essas personagens, destituídas de culpa e incapazes de compaixão. A partir de certa altura há uma fusão entre o político de personalidade psicopata e os eleitores que vão perdendo, movidos pela paixão política, a capacidade de se pôr no lugar do outro, de sentir culpa pelas suas opções ou de ter qualquer compaixão por quem pensa de modo diferente. E isto está a acontecer em muitas democracias, e Portugal não é uma excepção.

domingo, 23 de junho de 2024

Propostas interessantes do novo líder da JSD

Algumas propostas do novo líder da Juventude Social Democrata (aqui) mostram que os partidos democráticos, apesar de algum conservadorismo institucional e hábitos instalados de pensar a realidade social e política, têm capacidade de se abrir aos novos ventos sociais. Vale a pena sublinhar três dessas propostas. 

Em primeiro lugar, a limitação dos mandatos de deputados a três. Aquilo que se poderia perder em experiência acumulada devido a sucessivas reeleições seria compensado pela emergência de novos protagonistas, trazendo sangue novo e novas ideias sobre o país. Os próprios partidos seriam também beneficiários da proposta.

Em segundo lugar, uma ideia que desagrada aos três maiores partidos da Assembleia (PSD, PS e Chega). A existência de um ciclo nacional de compensação, de modo a que o número de representantes por partido se aproxime daquilo que os eleitores escolheram. Os grandes partidos beneficiam do actual sistema e elegem mais deputados do que aqueles que deveriam eleger se o número de deputados correspondesse ao número de votos.

Em terceiro lugar, a semana de quatro dias. A direita democrática precisa de romper com uma visão do trabalho e das relações entre trabalhadores e empresários marcada por uma concepção quantitativa do trabalho,. Não faz sentido que, com a evolução tecnológica, os horários de trabalho se mantenham quase inalterados. Há condições para que em muitos sectores se avance para os quatro dias de trabalho semanal e, paulatinamente, ir alargando esse horário a todo o mundo laboral. 

sábado, 22 de junho de 2024

O caso das gémeas brasileiras

O caso das gémeas brasileiras tratadas no hospital de Santa Maria é interessante a dois títulos. É interessante porque parece resultar de uma cadeia de cunhas, a qual se inscreve na cultura nacional. Este comportamento faz parte do modo como, há séculos, vivemos e parece estar inscrito naquilo que poderíamos chamar o ADN social dos portugueses, caso existisse um ADN social. É interessante também porque aquilo que está em jogo é mais do que apurar a verdade sobre quem meteu a cunha ou de onde partiu a sugestão da cunha, mas aproveitar a situação para fragilizar já não um partido político apenas mas a democracia. Seria interessante saber quantos dos indignados contra o regime por causa da cunha que favoreceu as crianças brasileiras nunca foram beneficiários de cunhas ou agentes promotores de cunhas. Não tenhamos ilusões, o que move aqueles que gritam indignados não é pôr fim à cultura nacional da cunha, mas pôr fim ao próprio regime democrático, para que eles e só eles possam gerir a distribuição das cunhas.

terça-feira, 18 de junho de 2024

O estranho caso da Madeira

Parece que a Madeira vai continuar em crise. Tudo aponta para que o programa de governo de Miguel Albuquerque seja chumbado na Assembleia Regional. O líder regional madeirense diz preparado para tudo, mesmo para ir de novo a eleições (aqui). A verdade é que ele não está preparado para a única coisa que devia estar preparado. Demitir-se, pois ele é o obstáculo à existência de um governo. 

segunda-feira, 17 de junho de 2024

Um ataque terrorista desmantelado

A notícia de que a Guardia Civil (Espanha) desmantelou uma rede terrorista ligada ao Estado Islâmico que preparava um grande ataque contra contra o Real Madrid e os seus adeptos (aqui) é mais um sinal sobre uma realidade política que, por diversas razões, uma parte dos actores políticos - nomeadamente, à esquerda - se recusa a ver. Uma parte do Islão político, não diferençável do Islão religioso, está em guerra aberta contra o Ocidente. É verdade que os muçulmanos não são todos terroristas, nem serão a maior parte. Também é verdade, todavia, que o Islão contém em si uma legitimação para esta guerra e isso é um problema político sério. 

Aquilo que é hoje minoritário, pode ser amanhã um movimento de massas de grande amplitude contra o modo de vida ocidental. Foram os sectores democráticos de direita e de esquerda que entregaram à extrema-direita uma bandeira que lhe dá votos e que tem todos as possibilidades, nas mãos de extremistas, de criar grandes perseguições. Não há incompatibilidade entre as pessoas que praticam a religião muçulmana e os valores demo-liberais, mas parece haver uma clara incompatibilidade entre o Islão e esses valores.  O problema não é de fácil solução, mas os partidos democráticos terão de o enfrentar, pois se o não fizerem em alguns países da Europa, será a extrema-direita a fazê-lo.

domingo, 16 de junho de 2024

Política, a táctica e o empate

Estamos num período de suspensão do tempo. Isto significa que nada de essencial, do ponto de vista estratégico, será feito pelo governo. Por dois motivos. Por um lado, as oposições não permitirão. Por outro, o governo, sem uma maioria absoluta, não tomará as decisões que lhe estão na natureza porque sabe que isso teria consequências negativas em futuras eleições. A suspensão do tempo estratégico, ao nível político, deu lugar ao tempo da táctica. Governo e oposições empreenderão acções com vista a futuras eleições e não ao país. 

Montenegro acredita que é uma reencarnação de Cavaco. Pedro Nuno Santos está à espera de um milagre que lhe permita derrubar o governo e ser beneficiado nas eleições. Ora, o mais certo é que estejam ambos enganados. Nem Montenegro é Cavaco, pois não exerce a atracção que este exercia no eleitorado. Nem se vislumbra como poderá haver um acontecimento que permita a esquerda ter uma maioria e aos socialistas voltar ao governo. Com este jogo táctico, estão, na realidade, ambos os lados a jogar para o empate. Para empatar o país.

sábado, 15 de junho de 2024

Um populismo à esquerda

A Cáritas da Venezuela alertou hoje para o facto de cinco milhões de venezuelanos sofrerem de subnutrição. Esta é mais uma prova do fiasco do populismo, neste caso, o de de esquerda. A situação de catástrofe social a que os actuais governantes têm conduzido o país estava já inscrita na emergência do regime chavista e da chamada revolução bolivariana. O drama da Venezuela, como da generalidade dos países da América Latina, reside na incapacidade da moderação e do meio-termo. Vive entre os terrores da extrema-direita e as fantasias, por vezes tão terroristas como as de sinal contrário, da extrema-esquerda revolucionária. A incapacidade de encontrar consensos e produzir regimes políticos moderados, assente em democracias liberais e Estados de direito fortes, intensifica a pobreza da maioria e a existências de elites que concentram o dinheiro e o poder. Seja qual for a cor, o populismo, com as suas soluções mágicas e fantasiosas, é a porta aberta para a infelicidade de grande parte das pessoas que vivem sob os seus ditames.

sexta-feira, 14 de junho de 2024

O suicídio das democracias

Também as democracias se suicidam. A convocação de eleições antecipadas por Macron é, na realidade, uma tentativa de suicídio do regime democrático. Outra tentativa de suicídio é a recandidatura de Joe Biden à Presidência dos EUA. Em ambos os casos, a morte paira diante dos olhos. As duas democracias em vez de a afastarem para longe, parecem fascinadas por ela. Será. uma grande sorte que ambas as tentativas de suicídio falhassem. 

quinta-feira, 13 de junho de 2024

O 25 de Novembro, o Verão Quente e a rasura da história

Voltemos ao 25 de Novembro. É muito curioso que em toda esta discussão estejam rasurados acontecimentos fundamentais. Fala-se muito do Verão Quente de 1975, da deriva iliberal e da força do esquerdismo militar, que são factuais. Contudo, parece que entre o dia 25 de Abril de 1974 e o dia 25 de Novembro de 1975 não se passou mais nada senão a deriva iliberal e a captura do país pelo esquerdismo revolucionário. Ora, esta rasura dos factos históricos é interessante porque apaga uma parte da realidade, parte traumática para os defensores do 25 de Novembro como feriado nacional. O que vai abrir as portas para o delírio revolucionário são dois acontecimentos gerados pela extrema-direita, o 28 de Setembro e o 11 de Março. São eles, com a sua radicalização extremista  promovida por fiéis ao anterior regime ou pelo bonapartismo spinolista, que escancaram as portas à radicalização à esquerda. Sem o 28 de Setembro, mas, fundamentalmente, sem o 11 de Março, toda a deriva seguinte não teria tido portas abertas para se dar. Falar no PREC e no Verão Quente de 1975, sem ter em consideração o que as forças radicais mais à direita tentaram para evitar a consolidação de uma democracia liberal, é acreditar que as coisas se formam por geração espontânea.

quarta-feira, 12 de junho de 2024

Os socialistas e o orçamento

Consta que os socialistas estão divididos sobre se devem abster-se ou votar contra o próximo orçamento do Estado. Tendo em conta os dados actuais - pode ser que se alterem até à votação, embora nada o indique - se o PS achar que ele e a esquerda no seu conjunto têm deputados a mais, então o melhor é mesmo provocar uma crise e receber a recompensa nas urnas. A questão é meramente pragmática. Um voto contra o orçamento da AD aproxima ou afasta os socialistas do poder? Na maré de atracção dos eleitores pelas direitas, tudo indica que afasta. Se for esse objectivo, então é racional votar contra o orçamento e derrubar o governo. A direita agradece.

terça-feira, 11 de junho de 2024

Em França, a direita rende-se

Voltemos a França. Éric Ciotti, líder de Les Républicans (LR), um partido da tradicional direita democrática e europeísta francesa, anunciou que o seu partido se coligaria, para as próximas eleições legislativas, com o Rassemblment National (RN), de Marine Le Pen (aqui). A direita democrática está a ser devorada pela direita radical e nacionalista e, o que resta, está a render-se. 

O que está em jogo na política francesa já não é a questão da distribuição de rendimentos, problema que dividia direita e esquerda. O que está em causa são duas outras coisas. Por um lado, o conflito entre defensores de uma democracia liberal e do Estado de direito e defensores de, pelo menos, uma iliberalização da democracia e fragilização do Estado de direito. Por outro, o conflito entre os defensores da União Europeia e os defensores do soberanismo nacional e desmantelamento da União Europeia (aqui).

segunda-feira, 10 de junho de 2024

Os números da derrota da esquerda

Os tempos estão adversos para os projectos de esquerda. O sinal mais espantoso disso foi a alegria com que o PS, o BE e o PCP receberam os resultados das eleições de ontem. O PS ganhou, mas perdeu um deputado. O BE e o PCP elegeram os respectivos cabeças de lista, mas ambos perdem um deputado. Quando a alegria é de alívio, estamos perante uma situação particularmente difícil. O PS perde 160 mil votos, o BE perde mais de 157 mil votos e o PCP (CDU) mais de 65 mil votos. Tudo isto (perda no total da esquerda de mais de 382 mil votos, embora haja que matizar um pouco essa perda, já que o Livre sobe quase 88 mil votos, por tanto uma perda de quase 300 mil votos) numas eleições em que houve um acréscimo de quase 635 mil votos. Ou a esquerda percebe as causas pelas quais os eleitores lhe estão a virar as costas ou pode estar perante uma longuíssima travessia do deserto. 

domingo, 9 de junho de 2024

O terramoto francês

O terramoto em França teve efeitos devastadores. Ainda continua a contagem de votos, mas as forças claramente alinhadas com o projecto europeu - os liberais de Macron, os socialistas, os republicanos e os verdes - somam, de momento, pouco mais de 41% dos votos. A extrema direita, somando a do partido da senhora Le Pen e o da sobrinha, Marion Maréchal, têm cerca de 37%. A convocação de legislativas pode tornar Paris, de novo, o epicentro de outro e mais doloroso terramoto, que abalará os fundamentos da construção europeia. 

sábado, 8 de junho de 2024

Atacar políticos, a nova moda

Está a tornar-se uma moda atacar políticos. Ontem foi a vez da primeira-ministra da Dinamarca, Mette Frederiksen (aqui). O primeiro caso ocorreu na Alemanha a 3 de Maio (aqui) e com o de ontem são já quatro, em pouco mais de um mês. O efeito de contaminação parece ser grande e corre-se o risco de uma epidemia. Estes casos são, porém, apenas um sintoma do mal que corrói as democracias ocidentais. Forças cada vez mais poderosas apostam em romper consensos e polarizar a vida política até que esta deixe de ser a concorrência, democraticamente regulada, pelo exercício do poder, entendido como serviço à comunidade, para se tornar uma luta entre amigos e inimigos, isto é, uma guerra civil larvar. É preciso não esquecer que estes ataques são não apenas actos criminosos, mas também actos políticos.

sexta-feira, 7 de junho de 2024

A esquerda e a imaginação.

Carmo Afonso tem hoje um artigo interessante no Público. Trata da incapacidade dos partidos de esquerda, como o PCP e o BE, de atrair eleitorado, apesar da solidez política dos seus candidatos. A questão residirá em que a generalidade das pessoas que trabalham por conta de terceiros não se considera como trabalhadora, mas como pertencendo à classe média, apesar de ter uma vida e rendimentos que a colocam muito abaixo da classe média. Quando votam, fazem-no não por aquilo que são, mas por aquilo que desejavam ser. Votam segundo as representações fantasiosas que têm do seu lugar na sociedade. Este fenómeno não é apenas português. Ele está presente em todas as democracias ocidentais.

O equívoco da articulista não reside no diagnóstico, bastante adequada, que faz, mas no que diz acerca das causas e dos candidatos. Uma frase resume o equívoco: O problema não está nas causas e não está nos candidatos. A primeira questão que se deve pôr é a seguinte: para que servem bons candidatos e boas causas, se os eleitores não se sentem por eles motivados? Isto mostra que uma parte da esquerda, o caso não se aplica ao Partido Socialista e, eventualmente, ao Livre, não percebeu uma coisa. As pessoas não se sentem dignificadas por serem trabalhadoras. Elas pretendem livrar-se da sua condição e aquilo que a esquerda lhe oferece é a manutenção da sua condição, mesmo se melhor remunerada e reconhecida.

Essa esquerda nunca percebeu que, a partir de certa altura, as pessoas não votam por aquilo que que são, mas por aquilo que desejam ser e por aquilo que querem para os filhos e para os netos. Fundamentalmente, o seu voto funda-se na imaginação e não na razão. Ora, a esquerda descurou a imaginação, o imaginário daqueles que diz defender, e entregou-o à direita, seja à direita clássica, com as suas variantes conservadoras e liberais, seja à extrema-direita, cujo imaginário se adapta ao ressentimento de muitos trabalhadores que desejam ser outra coisa do que são. O que Carmo Afonso não equaciona é o esgotamento do discurso da esquerda, a sua falta de imaginação e o desacerto, cada vez maior, entre as suas causas e as causas dos eleitores que ela pensava pertencer-lhe pela condição de classe.

quinta-feira, 6 de junho de 2024

O drama do IRS

O drama em torno do IRS, com a rejeição da proposta da AD e a aprovação da do PS, pouco tem que ver com os contribuintes. Na verdade, o alívio fiscal proposto pelo governo para os três escalões mais elevados do IRS era irrisório e os escalões mais baixos, beneficiados pela proposta do PS, têm um alívio também ele diminuto. Todos sabem que as contas públicas não permitem aventuras fiscais. Portanto, o que aconteceu e o drama que se lhe segue relaciona-se apenas com a questão do poder. 

O governo pensa ganhar votos apresentando-se com o papel de vítima. As oposições pensam fazê-lo mostrando que o governo é incapaz de gerar consensos para aprovar medidas que julgue serem benévolas. A realidade é que o governo depende da Assembleia da República e nunca conseguirá impor uma medida contra ela. Portanto, ou negoceia caso a caso, ou estabelece um acordo com um partido que lhe dê uma maioria ou vitimiza-se perante medidas que são estranhas ao seu programa, esperando que os eleitores se compadeçam dos seus infortúnios. 

quarta-feira, 5 de junho de 2024

Os jovens e a extrema-direita

Um artigo de Teresa de Sousa, no Público, reflecte, com dados provenientes do Politico, sobre a atracção exercida pela extrema-direita nas novas gerações. Fundamentalmente, sobre os jovens do sexo masculino. As raparigas, contudo, estão mais inclinadas para a esquerda. Existem diversas causas para que os rapazes e jovens adultos se sintam inclinados para o extremismo de direita. Duas causas parecem fundamentais. Por um lado, os homens são animais territoriais e como tal, a partir da presença de uma certa percentagem de pessoas consideradas cultural e etnicamente estranhas, os discursos anti-imigração encontram eco nessa animalidade territorial. Por outro, o fim, pelo menos ideológico, do papel de dominação dos homens sobre as mulheres e o triunfo destas em todas as áreas, a começar pela académica, está a causar não apenas ansiedade, mas uma cada vez menos escondida raiva. Os rapazes e jovens adultos parecem incapazes de se adaptar a um novo mundo onde a presença do estranho é constante e em que a visão da masculinidade tradicional está em crise. Daí, a sua adesão à retórica anti-imigração. Daí, o fomento entre eles de uma cultura machista e que, por norma, vem acompanhada de um desprezo pelas liberdades e direitos das mulheres. Encontram na extrema-direita a representação para a sua ansiedade e raiva. Fundamentalmente, para a sua insegurança. E é esta insegurança a chave que permite perceber por que razão os jovens do sexo masculino aderem às teses extremistas e radicais dessas direitas. 

terça-feira, 4 de junho de 2024

Um novo partido liberal

Desde que foi dada à luz a Iniciativa Liberal (IL), sempre pensei que muitas daquelas pessoas, caso tivessem vivido nos anos 70, teriam sido militantes dos partidos marxistas-leninistas e maoístas. Marxistas-leninistas e maoístas de ontem e liberais de hoje possuem a mesma pesporrência, a mesma rigidez ideológica e parecem crer que a sua ideologia não é uma ideologia mas a verdade sobre o homem, a sociedade, a economia e a vida. Há, em ambos os campos, uma visão cátara da realidade. Isto é, estamos perante visões religiosas da política, em que a ideologia é sentida como teologia, uma teologia dogmática.

Para confirmar a proximidade, chegou a notícia do projecto de um novo partido liberal, o Partido Liberal Social (PLS), promovido por dissidentes da IL (Público), o qual será, segundo os criadores, um partido verdadeiramente fiel aos princípios liberais, que terão sido, por certo, atraiçoados pelo partido liberal existente. Este tipo de acontecimento e de retórica é em tudo idêntico ao que acontecia nas velhas organizações de extrema-esquerda, que estavam, constantemente, em cisão, em busca dos mais verdadeiros e mais puros princípios marxistas-leninistas e maoístas. Os homens são seres religiosos, e quando expulsam a religião pela porta, ela entra pela janela.

segunda-feira, 3 de junho de 2024

México, Presidente no feminino

Pela primeira vez na sua história, os mexicanos elegeram uma mulher, Claudia Sheinbaum, para Presidente da República (Público). O mero facto de uma mulher ser eleita presidente é, por si só, um acontecimento político de relevo. Uma porta foi aberta. Além disso, Claudia Shienbaum é uma cientista do clima e defende um desenvolvimento sustentável, o que parece promissor. Outra curiosidade é que ela vai suceder López Obrador, pertencendo ao mesmo partido, o que significa uma vitória para a esquerda, num tempo em que esta acumula derrotas, um pouco por todo lado.

domingo, 2 de junho de 2024

Imigração e extrema-direita

Francisco Assis, candidato pelo PS ao parlamento europeu, considerou que sem imigrantes a economia entrava em colapso. A afirmação é plausível. Ora, um dos motivos para o crescimento da extrema-direita na Europa é, precisamente, a imigração. Seria interessante saber, porém, quantos empresários são ao mesmo tempo beneficiários da mão-de-obra imigrante e financiadores da extrema-direita.

Talvez a história da relação da imigração e da extrema-direita esteja a ser mal contada. O que está em causa será menos a presença de imigrantes do que os direitos que estes possam ter. Por certo que existirão muitos empresários europeus que querem imigrantes para trabalhar nas suas empresas, mas com reduzidos direitos laborais. A extrema-direita, com a sua retórica anti-imigração, será, na verdade, a voz deste empresariado que suporta mal a existência de mão-de-obra com direitos sociais e laborais.

sábado, 1 de junho de 2024

O caso da candidatura do Livre à Europa

O notável e notado afastamento do líder do Livre, Rui Tavares, da campanha de Francisco Paupério, cabeça de lista do partido às europeias, torna patente não apenas o afastamento entre ambos, mas os equívocos que o método de escolha de deputados adoptado pelo partido de Rui Tavares implica. Este caso adiciona-se ao de Joacine Katar-Moreira e torna, mais um vez, patente que aquilo que parece ser uma boa ideia se pode transformar numa arma contra a própria organização. 

Os partidos políticos são organizações centradas na conquista do poder (mesmo que seja um poder relativamente diminuto como eleger um deputado ou um eurodeputado), o que exige um consenso mínimo nas equipas políticas. As directas para a escolha de deputados trazem sempre riscos acrescidos de ruptura dentro de uma organização. E isso é ainda mais claro em pequenos partidos como o Livre, os quais podem ser facilmente capturados por visões políticas muito diferentes das do partido. Imagina-se, facilmente, que Rui Tavares tema a repetição, agora no parlamento europeu, do caso Joacine ou dos seu próprio caso quando, no mesmo parlamento, cortou com o BE, pelo qual tinha sido eleito.