sábado, 24 de agosto de 2024

A mulher como problema político

Um dos problemas estruturais da política é o do estatuto das mulheres. Não há nada como situações radicalizadas e hiperbólicas para o perceber. Uma nova lei no Afeganistão dos talibãs proíbe a mulher de ler, cantar ou falar em público. Mais, as mulheres devem cobrir todo o corpo em público, incluindo o rosto, para evitar causar tentação ou evitar olhares indesejados (aqui). Esta situação absolutamente paranóica permite perceber com clareza extrema muito do que se passa na política, mesmo na dos países ocidentais, aqui de forma mais disfarçada. Os homens não conseguem confrontar-se com o facto de as mulheres terem a liberdade de dirigir a sua própria vida e, o pior tormento, a sua sexualidade. E isto tornou-se uma questão política, como se pode ver nos EUA, mas também já na Europa. Não é por acaso que os rapazes das novas gerações se inclinam cada vez mais para soluções extremistas de direita, na ânsia de pôr as mulheres no devido lugar.

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Presidenciais, mais 10 anos?

Duas notícias do Público trazem de volta os cenários para as próximas eleições presidenciais. Numa, Hugo Soares, líder parlamentar do PSD, avança com o nome de Leonor Beleza como candidata na área do centro-direita (aqui), tornando ainda patente que o PSD tem um bom stock de presidenciáveis, Marques Mendes, Passos Coelho e Durão Barroso. Na outra, refere-se que há, na esquerda, uma vontade de encontrar um candidato comum, mas que BE e Livre não vêem com bom olhos a candidatura de Mário Centeno (aqui). Outros nomes apontados na área socialista, como António Vitorino ou Santos Silva, são também problemáticos e pouco atraentes para o eleitorado. A direita detém a presidência da República há 20 anos e, com a ausência dos candidatos naturais da esquerda, António Guterres e António Costa, prepara-se para mais dez anos de presidência.

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

O discurso de Trump

Há alguns sinais interessantes sobre uma possível vitória de Kamala Harris nas próximas eleições presidenciais. O mais interessante é o próprio discurso de Trump. Ao acusar Kamala Harris de comunista ou, agora, de afirmar que com ela na presidência teremos, quase certo, uma terceira guerra mundial, Trump parece desesperado. É evidente que para uma parte dos eleitores republicanos o que Trump diz da democrata é a pura verdade, mas esses são os eleitores indefectíveis, os quais votariam em Trump mesmo que este se transformasse numa galinha, e não aqueles que decidem as eleições. Veremos se Kamala Harris e Tim Walz continuam a ter o talento suficiente para provocar em Trump um discursos inverosímil de tão catastrofista que é.

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

A política e a carne no assador

Lê-se, num lead de uma notícia no site  da SIC, o seguinte: Montenegro pôs carne a mais no assador. É bom dar dinheiro às pessoas, mas politicamente não era preciso. O PS não vai impedir o orçamento. O autor do excerto é José Miguel Júdice, tê-lo-á proferido num comentário na televisão. Não é o conteúdo que é interessante, mas o estilo, nomeadamente, a expressão Montenegro pôs carne a mais no assador. Esta expressão metafórica não provém de uma preocupação culinária, mas deriva do comentário futebolístico. Estas transferências linguísticas do futebol para a política estão longe de ser inconsequentes, mesmo que sejam espontâneas. Estabelecem uma analogia entre futebol e política e transferem para a política a relação hooliganesca que as claques dos clubes têm com o jogo. A degradação da política também acontece pela degradação da linguagem dos comentadores.

terça-feira, 20 de agosto de 2024

A incontornabilidade do referendo

O Chega precisa, para justificar o voto contra o orçamento, de um pretexto. Encontrou-o no referendo sobre a imigração. Sabe perfeitamente que o governo não aceitará esse referendo. A incontornabilidade do referendo (aqui) visa a chicane política e encontrar uma desculpa perante os eleitores de direita para fazer depender o orçamento do governo das boas graças dos socialistas. Resta saber se este truque terá algum efeito positivo para o partido de Ventura. Mais uma vez, o Chega não é uma solução para os problemas do país. Ele é um dos problemas.

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Em louvor do centro político

Há, em Portugal, uma expressão política de contornos tenebrosos. Trata-se de "centrão". Designa o arco da governação, PS, PSD e CDS, os quais vão trocando de lugar na governação e na oposição. Por norma, é associada aos interesses, como quando se diz o "centrão de interesses". Isto faz parte da bavardage política. O seu carácter tenebroso está naquilo que não é dito. A mensagem subliminar é se o centro não é virtuoso, então a virtude estará nos extremos. É uma forma encapotada de louvar soluções políticas insensatas e perigosas. Sempre que a solução política se radicaliza, a sociedade fractura-se. As soluções de centro - ora à direita, ora à esquerda - não são iguais, mas asseguram um equilíbrio que evita a polarização política e promove a prudência nas decisões. Contrariamente ao que muitos pensam, dirigir uma comunidade política não visa arrastá-la numa aventura, mas assegurar a sua continuidade no tempo e a sua unidade na forma.

domingo, 18 de agosto de 2024

Turismo de massas

No Público, um artigo de Michael Hagedorn, consultor no âmbito da cooperação internacional, tem o sugestivo título de Lisboa prostituída. Torna patente como a orientação de Portugal para o turismo de massas está a matar a sua capital e, por certo, começa a matar outras cidades. Os portugueses têm um talento inexcedível para repetir os erros do passado. Foi o ciclo das especiarias, foi o ciclo do ouro do Brasil e, agora, temos as novas especiarias e o novo ouro do Brasil, o turismo de massas. Como nas épocas anteriores, alguém vai ganhar muito dinheiro e, a generalidade dos portugueses, vai ficar com uma vida pior. Há uma inclinação nacional para a facilidade. O pior, porém, são as elites políticas que, em vez de contrariarem essa inclinação, são o seu suporte e a sua força dinamizadora. O que iremos inventar, para fugir àquilo que é exigente, quando o ciclo do turismo de massas se fechar?

sábado, 17 de agosto de 2024

Eleitoralismo

Por que razão o bónus aos reformados e pensionistas meditado pelo actual governo é uma medida de carácter eleitoralista? Por dois motivos. Em primeiro lugar, visa criar um impacto momentâneo, coisa que não aconteceria se fosse diluída nas 14 pensões anuais. O bónus mais elevado é de 200 euros. Dividido por 14 mensalidades daria qualquer coisa como 14,29 euros. A situação seria mais invisível no caso dos bónus de 150 e 100 euros. Nenhum pensionista, no momento do voto se lembraria dos 14,29 euros, mas há grande possibilidade de se lembrar da generosidade dos 200 euros. Em segundo lugar, a ideia de bónus pretende ostentar a bondade do governo, enquanto evita qualquer compromisso para o futuro. Isto é, a ideia não é alterar a situação das reformas e pensões baixas, mas conquistar os votos desse eleitorado, aproveitando as contas deixadas pelo anterior governo. 

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

O Pontal e o verdadeiro programa

O primeiro-ministro, na chamada festa do Pontal, anunciou três medidas. Um pequeno bónus para cerca de dois milhões de reformados, abertura de mais vagas nos cursos de medicina e passe ferroviário nacional. Estas medidas têm duas características. Por um lado, poderiam ser tomadas por um governo de esquerda. Por outro, são irrelevantes do ponto de vista dos problemas que as suscitam. Não ajudam a tratar nem do problema dos reformados com baixas pensões, nem contribuem para a solução dos problemas do Serviço Nacional de Saúde, nem desenham uma política para o transporte ferroviário em Portugal.

São medidas de natureza eleitoralista, visando capturar eleitorado ao centro, e com uma função distractiva desse mesmo eleitorado para aquilo que é a visão estrutural da direita. É preciso não esquecer que Luís Montenegro foi um fiel escudeiro das políticas de Passos Coelho, o qual pretendeu - e fê-lo - ultrapassar em radicalidade o radicalismo do programa da troika. Se se quiser perceber o que será o país com uma maioria de direita, onde não esteja presente o Chega, há que olhar com atenção para as políticas do PSD-CDS sob o comando de Passos Coelho. O discurso do Pontal serve para adormecer incautos e ganhar tempo e eleitores para aplicar o verdadeiro programa.

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Imoralidade, agora na Argentina

Um novo exemplo da degradação moral trazido pela direita radical. Agora, na Argentina. Milei acaba com a investigação ao desaparecimento de crianças durante a ditadura (aqui). A ditadura militar argentina (1976-1983) foi particularmente feroz. Entre as malfeitorias praticadas está o desaparecimento de milhares de crianças (estima-se que cerca de 30 mil, embora Milei reconheça menos de nove mil desaparecimentos). Retiradas muitas vezes às mães após o nascimento num centro de detenção, mães que desapareceram ou foram assassinadas, essas crianças foram entregues para adopção por famílias ligadas ao regime ou a pessoas que desconheciam a origem das crianças. O movimento Abuelas da Plaza de Mayo tem desempenhado um papel fundamental na denúncia desses crimes e na busca pela restituição da identidade a essas crianças. Desde o fim da ditadura, a organização tem trabalhado para identificar e localizar as crianças apropriadas, utilizando, entre outros métodos, exames de ADN para confirmar as suas identidades. À imoralidade da prática de rapto de crianças pela ditadura militar sucede agora imoralidade do actual poder argentino ao pôr fim à investigação pelo Estado do paradeiro dessas pessoas que foram roubadas à sua família. 

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Promoção da desigualdade de oportunidades

Mesmo sem propinas exorbitantes como aquelas que se pagam em alguns países, ter uma despesa mensal de 900 euros (aqui) para estudar no ensino superior significa que parte muito significativa dos jovens portugueses têm escassas ou nulas possibilidades de o frequentar. Não por acaso, o número de desistências é o que é.

O principal problema reside no preço da habitação. Ora, este problema existe há muito para os estudantes que se têm de deslocar para frequentar a Universidade fora do sítio onde vivem. Nunca os governos, de várias cores, estiveram preocupados com uma política de construção sistemática de residências estudantis. 

Não há governo de esquerda ou de direita que não goste de ostentar a educação como um factor de promoção de igualdade de oportunidades. Contudo, investir naquilo que asseguraria essa igualdade nunca esteve nas suas intenções. A Universidade continua a ser, devido à inércia dos governos, um factor de promoção da desigualdade de oportunidades.

terça-feira, 13 de agosto de 2024

Extrema-direita e corrupção moral

A direita, não poucas vezes, indigna-se perante aquilo que classifica de superioridade moral arvorada pela esquerda. O problema é que não hesita em dar argumentos a essa esquerda, também ela, não poucas vezes, imoral. Neste momento, a Suécia tem um governo de direita, uma coligação de três partidos de centro-direita, com o apoio parlamentar dos Democratas Suecos, um partido de extrema-direita. Devido ao acordo com a extrema-direita está em estudo uma lei que obriga os funcionários públicos (médicos, professores, funcionários de bibliotecas, etc., etc.) a denunciar imigrantes ilegais. Há uma enorme contestação das organizações desses sectores de servidores públicos da comunidade (aqui).

A lei, se vier a existir, é moralmente repugnante. Não apenas por atingir os mais fracos (os imigrantes ilegais), mas por transformar os servidores públicos em denunciantes, numa espécie de informadores de uma qualquer polícia de Estado de um regime autoritário ou totalitário. A influência da extrema-direita não tem apenas impacto político, um impacto que corrói as instituições democráticas e o Estado de direito. Essa influência corrói o carácter das pessoas, degrada-as moralmente, impõe-lhe deveres que qualquer pessoa moralmente sã terá vergonha de cumprir. Uma das vantagens que a democracia liberal tem, perante qualquer outro regime, é que não obriga as pessoas a actos heróicos e a correr riscos existenciais para poderem manter a dignidade moral. E será isso que a possível lei obrigará aos funcionários públicos, caso estes não queiram sentir-se com seres moralmente abjectos.

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Discriminação pela idade

Um estudo acabado de publicar da Fundação Francisco Manuel dos Santos mostra que são os mais jovens que sentem maior discriminação, devido à idade, nos locais de trabalho (aqui). Este tipo de estudos lida com percepções e não com uma observação dos factos. São mais indicativos do estado de espírito de quem responde do que da realidade efectiva. 

Uma das hipóteses que se podem colocar para explicar este sentimento por parte das novas gerações pode residir nas elevadas expectativas que são criadas socialmente - a retórica da geração mais bem preparada, a ideia de que os mais novos são mais criativos e inovadores - e o real desempenho nas empresas. 

Durante muito tempo, desvalorizou-se as pessoas com mais idade, o facto de não serem suficientemente maleáveis perante as inovações, a suposta incapacidade de se adaptarem aos novos tempos. O mais plausível é pensar que tanto o endeusamento das novas gerações como a diabolização das mais velhas eram exagerados. 

Muitos destes exageros se devem à retórica política e a práticas políticas que tendem, na formação escolar das novas gerações, a eliminar obstáculos e dificuldades, criando nelas uma ilusão sobre aquilo que irão encontrar ao abandonar os bancos das escolas e das universidades. A discriminação sentida pelos mais jovens pode ser apenas o resultado da frustração perante uma realidade para a qual, devido à orientação das políticas educativas, não foram preparados.

domingo, 11 de agosto de 2024

A resposta de Israel

Parece evidente que a resposta de Israel ao ataque do Hamas de 7 de Outubro de 2023 é, tendo em conta os mortos e os reféns feitos pelo movimento palestiniano, completamente desproporcional. Esta desproporcionalidade pode significar, na perspectiva dos dirigentes israelitas, uma punição de tal grandeza que desencoraje novas aventuras do Hamas. No entanto, outra linha de leitura sublinhará que o ataque do Hamas, do ponto de vista simbólico, foi tão devastador para o Estado israelita quanto está a ser a resposta do exército de Israel. Feriu de morte o mito da segurança das populações de Israel. A dimensão da resposta israelita deve ser lida, e ler não é legitimar ou justificar, tendo em conta a devastação das certezas em que viviam os habitantes de Israel. Mais do que o número de vítimas, são as múltiplas camadas de significação que o ataque do Hamas encerra que explicam a dureza do comportamento de Israel.

sábado, 10 de agosto de 2024

A questão catalã

Um estranho aparecimento e um estranho desaparecimento são as últimas acções do líder separatista catalão Carles Puigdemont. A sua situação de exilado político reflecte duas questões fundamentais. Uma de natureza constitucional e outra de natureza ideológica. A questão ideológica centra-se no confronto entre dois nacionalismos, o castelhano e o catalão. De certo modo, equivalem-se no seu radicalismo. O problema constitucional relaciona-se com a impossibilidade de se efectuar um referendo que permita aos catalães dizerem aquilo que querem. Em países democráticos, isso não deveria acontecer. 

No Canadá, a região francófona pôde pronunciar-se e dizer se queria continuar ou separar-se do Canadá. O mesmo aconteceu no Reino Unido com os escoceses. A democracia falou e, talvez não por acaso, ambos os projectos independentistas perderam. Provavelmente, seria isso que aconteceria na Catalunha, até porque muitos dos catalães de hoje vêm de outros lados de Espanha. Percebe-se que países autocráticos, e que sonham com impérios, não permitam que as pessoas se pronunciem. Isso não deveria acontecer em países democráticos, como se pensa que a Espanha é.

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

O PSD da oposição e o PSD do governo

Luís Montenegro pede tempo para resolver os problemas do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Na verdade, os problemas que assolam o SNS não se resolvem de um momento para o outro, pois são complexos e dependem de variáveis que nenhum governo controla. O problema, porém, é que o PSD, na oposição, com a ajuda das Ordens que tinham dirigentes que lhe estavam próximos, sempre achou que resolvia os problemas da Saúde de um momento para o outro, e desvalorizava, quando não fazia guerra, os passos que o governo anterior ia dando. Chegado à governação, desfez o que estava estava em andamento e tornou pior o que já estava com problemas. Todos os partidos na oposição possuem soluções extraordinárias, que se evaporam assim que chegam ao governo. Contudo, o PSD é aquele que na oposição leva a farsa mais longe. Basta recordar o que dizia Passos Coelho sobre os impostos antes de chegar ao governo e o que fez mal lá chegou.

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Dois ministros

Não é indiferente do ponto de vista ideológico haver um governo de centro-direita ou de centro-esquerda. Há coincidência em pontos importantes, mas também, noutros pontos importantes, existem acentuadas clivagens, sejam quais forem as áreas, talvez com excepção da política externa. No entanto, a qualidade dos ministros também é fundamental e não apenas a orientação ideológica. No actual governo, pode-se, desde já, perceber que o Ministro da Educação, Fernando Alexandre, parece muito mais competente do que a Ministra da Saúde, Ana Paula Martins. O responsável da pasta da Educação não se preocupou em desfazer o que vinha de trás, mas em resolver problemas, tomando decisões de acordo com os meios disponíveis. Na Saúde parece passar-se exactamente o contrário. Enquanto num lado percebe-se a existência de um caminho, no outro a confusão aumenta todos os dias. Na verdade, as pessoas contam e nem todos são fadados para ministros.

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

A crise inglesa

Há um equívoco na leitura feita por muitos órgãos de informação sobre o problema dos desacatos provocados pela extrema-direita em Inglaterra. Sugerem que as mobilizações feitas se devem a uma notícia falsa propalada pelas redes sociais. Se assim fosse, o esclarecimento da verdade teria acabado de imediato com os desacatos. Ora, o que aconteceu, depois dos esclarecimentos prestados sobre a autoria do ataque, é que a desordem se intensificou. O triplo homicídio de crianças, uma delas portuguesa, foi a gota de água que as forças de extrema-direita inglesa estavam à espera. Se não fosse esse acontecimento seria outro qualquer. A expressiva votação no Reform UK, de Nigel Farage, 14% dos votos expressos, deveria ter alertado para o crescimento na população de sentimentos extremistas, os quais, mais tarde ou mais cedo, dariam cobertura a este tipo de desordem. É plausível que em Inglaterra esteja a crescer o racismo e a xenofobia e é esse crescimento que sustenta o comportamento da extrema-direita.

terça-feira, 6 de agosto de 2024

O teatro orçamental

A pressão para o actual líder do PS, Pedro Nuno Santos, aprovar o próximo orçamento de Estado vem um pouco de todos os lados (aqui). Contudo, há que ler este drama sem qualquer ilusão. O orçamento de Estado de 2025 pouco conta para a trama teatral. O que está em jogo, da parte do governo, é conseguir uma janela de oportunidade para chegar a eleições em vantagem suficientemente clara que permita aspirar a uma maioria absoluta ou em conjunto com a IL. Ora, o comportamento dos socialistas é simétrico. Deixarão passar o orçamento se isso lhe convier. Se, por um acidente de percurso, tiverem eles a janela de oportunidade para almejar uma clara vitória eleitoral, não hesitarão em votar contra o orçamento. Este ficará nas mãos do Chega e das contas que este fizer ao seu futuro eleitoral. Todo o resto é encenação para fortalecer a posição de cada partido.

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

A selecção dos refugiados

Cindy Ngamba, uma pugilista nascida nos Camarões, ganhou a primeira medalha olímpica para a sua selecção. Não a dos Camarões, mas a dos refugiados. Esta selecção olímpica representa a nação dos que perderam a nação. O facto de o Comité Olímpico Internacional ter aberto esta possibilidade mostra que o problema dos refugiados, daqueles que tiveram de fugir do seu país, é um problema que não pode ser varrido para debaixo do tapete. Não apenas devido aos regimes políticos que geram a massa dos refugiados, mas também aos problemas políticos que emergem nos países de acolhimento desses mesmo refugiados.

domingo, 4 de agosto de 2024

Uma pugilista, política e ciência

Um sinal claro de que a política, tal como ela foi entendida durante muitos anos, mudou é o debate em torno da pugilista argelina Imane Khelif. A dimensão política do caso não se refere tanto à posição da Argélia em defesa da sua atleta, mas ao debate nas redes sociais - a voz do povo - em torno da identidade efectiva de Imane Khelif. É um debate que divide conservadores e liberais, estando parte significativa dos primeiros, na verdade os mais ruidosos e empolgados, absolutamente certos de que a atleta é transgénero. Até ao momento não existe qualquer prova de que a atleta o seja, mas provas são coisas que pouco contam para quem tem certezas absolutas.

Plausivelmente, podemos pensar que a tipificação idealizada do masculino e do feminino seja isso mesmo, uma idealização. Talvez o masculino e o feminino façam parte da mesma linha, na qual se poderão encontrar diferentes modalidades de ser homem ou mulher, havendo homens mais próximos de serem mulheres e mulheres mais próximas de serem homens. Isto, porém, é um representação impressionista e a questão é, na verdade, de natureza científica. Que ela se tenha tornado uma questão política - e uma questão política de primeira grandeza no debate social - significa que o conhecimento nos traz problemas muito desagradáveis para as certezas que nos guiavam.

Desde o momento que o homem começou a desenvolver mecanismos de investigação científica fundados na observação da realidade, a visão que o homem comum tinha do cosmos, da natureza e de si mesmo tem sido mostrada como falsa. Enquanto a investigação tocou nas concepções do universo, na compreensão da natureza, o homem comum - aquele que, nos dias de hoje, nas redes sociais, sabe tudo - não se sentiu ameaçado. Quando, porém, o conhecimento começa a desencantar as representações míticas que se tem da natureza humana, esse homem comum sente-se em pânico e reage com violência, tanto verbal como física.

Desde o século XVII, embora aqui com alguns limites, a ciência tem vivido em relativa tranquilidade. Mesmo o facto de ter permitido produzir a bomba atómica não assustou o homem comum. Quando ela se centra na natureza humana, quando olha para ela como um qualquer outro objecto de investigação, esse homem comum reage e esta reacção ganha contornos políticos. Ao politizar-se aquilo que é da ordem do conhecimento, caminha-se para o momento em que a ciência, toda ela, pode ser posta em causa. O medo que o homem tem de descobrir qual a sua verdadeira natureza e a impossibilidade de suportar a sua realidade, ao transformar-se em programa político, pode trazer ao mundo um novo período de perseguição da ciência e do conhecimento.

sábado, 3 de agosto de 2024

Destruir a Constituição

A novela da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) ao caso das gémeas tratadas no Hospital de Santa Maria pouco tem que ver com o apuramento da verdade. Está em causa um ataque às instituições democráticas e, nos últimos desenvolvimentos, à Presidência da República. A tentativa de levar o Presidente da República a depor numa CPI seria uma espécie de golpe de estado constitucional. Ora, as forças que o pretendem fazer estão muito pouco interessadas na defesa da Constituição. Trabalham para a destruir.

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

A sombra de Gouveia e Melo

Segundo uma sondagem da Intercampus para o Correio da Manhã (aqui) só Gouveia e Melo faria alguma sombra a uma eventual candidatura presidencial de António Guterres. Seria, na direita, o candidato melhor colocado. Como não é plausível que António Guterres se candidate, parece haver um largo horizonte para uma candidatura vitoriosa de Gouveia e Melo. Ora, se isso acontecer, estamos perante uma imagem sombria da nossa vida política. Por um lado, porque os militares, numa democracia saudável, devem permanecer afastados da política. Isto seria um retrocesso que nos levaria ao tempo das duas primeiras eleições presidenciais, pós 25 de Abril, nas quais eram militares as principais figuras na disputa pela presidência. Em segundo lugar, sublinharia, mais um vez, a dificuldade dos portugueses em aceitar uma visão civilista do poder político. Gouveia e Melo não deu qualquer prova de competência política - e não tinha que dar, pois não é político - e aquilo que o tornou uma personagem pública, organizar a distribuição das vacinas no tempo da pandemia, não nos diz nada sobre a sua competência política. Por fim, a sua candidatura seria um projecto político meramente pessoal, a que, eventualmente, os partidos políticos da direita se teriam de submeter. Ora, conhece-se muito pouco ou nada do pensamento político de Gouveia e Melo. O que poderá um homem de acção, como deve ser todo o militar, querer de um cargo político que tem poucos poderes que permitam agir?

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Médio Oriente e teologia política

O Médio Oriente está crucificado por duas posições maximalistas. O grande Israel e a Grande Palestina. Qualquer uma destas grandezas implica o desaparecimento da outra. Para piorar a situação, cada uma delas tem por detrás uma narrativa religiosa legitimadora. Não se trata de chegar a acordos razoáveis, mas de realizar uma visão absoluta de um destino, um destino traçado por Deus. 

Sempre que para assuntos humanos é invocado o nome de Deus pode-se esperar o pior, isto é, a entrega da situação ao diabo e a transformação da vida dos homens num inferno. Nada pior do que misturar teologia e política. Resta saber se, na verdade, é possível separá-las. Pelo menos, no Médio Oriente, onde o espírito que move as partes - mesmo parte substancial de Israel - é o da teocracia.