Ainda por causa de certas reivindicações da social democracia por forças políticas ex-revolucionárias. Se se olhar para a direita democrática europeia, deixando de lado as especificidades francesas do gaullismo, podemos descortinar três grandes tradições políticas, todas respeitáveis e com largas experiências governativas, muitas vezes bem-sucedidas. O conservadorismo, a democracia-cristã e o liberalismo. Uma das coisas interessantes, numa altura em que há tendência para desvalorizar a conversão – que, na verdade, não é de agora – de certos sectores da esquerda à democracia liberal e à adopção prática de programas políticos não revolucionários, é ver o percurso do conservadorismo. Começou por ser um movimento antiliberal e antidemocrático, para se converter à democracia liberal e ser, em Inglaterra, o principal partido do regime democrático. Tanto a democracia cristã como o liberalismo estiveram, nas suas origens, mais próximos daquilo que hoje chamamos democracia liberal, embora haja que ter em conta que ela nem sempre foi entendida de forma tão extensa como hoje. Os partidos políticos são organismos vivos e adaptam-se ao ecossistema em que vivem. Há coisas que o tempo aniquila. Por exemplo, o projecto reaccionário que emerge com Bonald, de Maistre e muitos outros conservadores adeptos do Antigo Regime, perdeu, com a vulgarização dos valores liberais, por completo o sentido. A reacção, tal como era então entendida, deixou de ter conteúdo operatório. O mesmo se está a passar com o projecto revolucionário. Não é apenas a queda da URSS e a conversão da China a um autoritarismo político mesclado com liberalismo económico, mas as melhorias graduais que se assiste em quase todo o lado tornam o projecto revolucionário tão utópico como o da reacção adepta do absolutismo do Antigo Regime. O mais provável é que a própria categoria de Revolução, que desde 1789 assombrou o pensamento político europeu (embora, a categoria já se tivesse manifestado um século antes com a Gloriosa Revolução (Inglaterra) e, já no XVIII, com a Revolução Americana), tenha perdido conteúdo político e seja hoje uma mera categoria histórica, tal como surge no título do livro do historiador Eric Hobsbawm, A Era das Revoluções.
domingo, 13 de dezembro de 2020
terça-feira, 8 de dezembro de 2020
Marisa Matias e a social-democracia
Anda por aí um charivari porque Marisa Matias, candidata à Presidência da República, apoiado pelo BE, se disse social-democrata. Isto já tinha acontecido quando Catarina Martins tinha afirmado qualquer coisa semelhante. Então pessoas de direita acham que a senhora só pode ser uma embusteira. No entanto, apenas uma cultura política absolutamente anedótica pode achar que a social-democracia é de direita. Nunca o foi, desde a sua origem. Social-democrata era o partido a que pertenceu Karl Marx. Social-democrata era o partido a que pertenceu Lenine até à ruptura entre mencheviques e bolcheviques. Com o advento dos partidos comunistas e da III Internacional, os partidos operários dividiram-se em dois grupos. Os comunistas e os sociais-democratas. Estes dispensaram a revolução e, mais tarde a partir da célebre convenção de Bad Godesberg do SPD alemão, dispensaram o marxismo. No entanto, nunca a social-democracia deixou de ser de esquerda. Olhando para o BE, não parece haver qualquer razão para duvidar do que diz Marisa Matias, a não ser que se considere o PSD português um partido social-democrata, coisa que se deve a um equívoco e ao atraso com que Portugal chegou a um regime democrático. Com representação parlamentar em Portugal, não me parece existir um único partido de esquerda cuja praxis política seja outra coisa senão social-democrata. Isto é, defensora de reformas políticas visando uma certa, embora mitigada, igualdade e o Estado social. Há diferenças de intensidade e também no volume com que o discurso é debitado, mas nada disso altera a realidade política.
sábado, 28 de novembro de 2020
O congresso do PCP
Um dos equívocos que corre por aí relativamente ao congresso do PCP é aquele que se manifesta na indignação pela excepção que os políticos têm de se deslocar, enquanto as pessoas estão confinadas. Na verdade, a excepção dos políticos é uma excepção acompanhada por muitas outras. As pessoas que vão trabalhar, por exemplo, podem deslocar-se entre concelhos. Há mais. Um congresso político, qualquer que seja o partido, não é uma festa, é trabalho político, por vezes duro e desagradável. Aliás, qualquer congresso político deve ser uma chatice inenarrável, embora quem participa nele esteja legitimamente convencido de que cumpre um dever.
Contudo o problema nem é esse. A actividade política é
diferente de todas as outras e por isso tem de se regular por normas
diferentes. Difere em quê? No facto da acção política ser a condição de
possibilidade de todas as outras. Sem acção política toda a sociedade colapsa.
Por isso, ela nunca pode ser suspensa. Numa democracia, não pode ser suspensa a
actividade do governo, do presidente, mas também não pode ser suspensa a dos
partidos. Se o fosse, então estaríamos numa ditadura. Gostemos ou não do
congresso do PCP, ele é uma prova viva de que vivemos em democracia. Faz parte
da diferença inultrapassável que inevitavelmente separa a política de qualquer
outra actividade.
Um outro problema é se o PCP ganha ou perde politicamente com a realização do congresso nesta data. Não faço ideia. Não conheço os objectivos desse partido que o levaram a organizar o congresso. Em abstracto pode-se dizer que se o congresso realiza ou contribui para a realização desses objectivos que desconheço, então o PCP ganhou ou ganhará alguma coisa. Se o congresso for um obstáculo para a realização desses objectivos, então o PCP perderá alguma coisa. Isso, porém, é um problema do PCP.
Os cidadãos devem indignar-se porque um partido político realiza um congresso e mantém, desse modo, a sua actividade política? Julgo que essa indignação é um equívoco. Mais, julgo que deveriam indignar-se com os partidos que suspendem a sua actividade normal (devidamente supervisionada pelas autoridades de saúde), enquanto as pessoas têm de ir trabalhar, de ir para as escolas, de ir para os hospitais, etc. Um partido suspender a sua actividade política pode mesmo ser um desrespeito pelos seus representados. As pessoas podem não querer compreender, mas toda a sua vida e todos os seus interesses dependem da actividade política e do seu normal funcionamento. Se se suspendesse a actividade política, tudo colapsaria a um ritmo inimaginável. A política não é uma actividade como as outras. É aquela que permite que todas as outras existam dentro da ordem e da lei.
quarta-feira, 25 de novembro de 2020
O 25 de Novembro
Quando se fala, hoje em dia, sobre o período político que mediou entre o 25 de Abril de 1974 e o 25 de Novembro de 1975, há uma tentação grande para distorcer a factualidade. A narrativa conta que se travava uma grande luta entre os defensores da democracia liberal e os comunistas e a extrema-esquerda. Ora, isto pura e simplesmente é falso. Havia no país, muito bem demarcadas, quatro facções em conflito. Os defensores de um regime democrático-representativo, como o actual, encabeçados por Mário Soares, secundado por Sá Carneiro e Freitas do Amaral (com os respectivos prolongamentos militares). Havia os defensores de uma radicalização da Revolução e o caminho para qualquer coisa tipo ditadura do proletariado, escorados na extrema-esquerda militante e extremamente activa (com prolongamentos militares). Havia o Partido Comunista (também com os seus apoios militares, por certo) numa situação extremamente difícil, devido à pressão da extrema-esquerda e à sua convicção (aliás, correcta) de que aquilo que a extrema-esquerda pretendia era não apenas utópico, mas perigoso, pois poderia levar ao conflito e à restauração da ditadura. Havia, coisa que se tornou moda esquecer, os defensores do antigo regime e do império colonial (também eles com os seus militares de apoio e as suas milícias em organização), bastante activos. Nada do que se passou entre o dia, vamos lá, 2 de Maio de 1974 e o dia 25 de Novembro de 1975 pode ser lido a preto e branco. Havia uma deriva da extrema-esquerda? Havia. Mas não era a única. A extrema-direita nunca deixou de ser uma ameaça à democracia nesse tempo. O caso do PCP é o mais interessante, pois querendo mais do que uma democracia burguesa, não tinha qualquer ilusão sobre aonde conduziria o delírio da extrema-esquerda, e como isso se abateria sobre o próprio PCP. Nunca pôs em causa o regime pluripartidário, tentou segurar as chamadas conquistas de Abril – economia nacionalizada e a chamada Reforma Agrária – mas num quadro de compromisso com a democracia representativa. O 25 de Novembro teve vencedores e teve derrotados. Do lado dos vencedores, está Mário Soares, Sá Carneiro, Freitas do Amaral e os militares moderados. Do lado dos derrotados está a extrema-esquerda e, coisa que é esquecida, a extrema-direita, que deixou de ter espaço político para manobrar, tendo entrado decisivamente pelo terrorismo. Quanto ao PCP, ele ficou do lado dos que empataram. Perdeu no modelo económico, ganhou em livrar-se da pressão utópica da extrema-esquerda e também do perigo de ter de voltar à clandestinidade, e não perdeu no modelo de regime pluripartidário, onde se integrou como um dos elementos centrais da democracia portuguesa. O mais importante, porém, é que nada daquele tempo é simples e claro, como há muito se quer fazer crer.