domingo, 28 de abril de 2024

AD, política demográfica e imigração ponderada

Paulo Rangel, actual ministro dos Negócios Estrangeiros, propôs aos candidatos da AD para as eleições europeias que defendessem uma política demográfica comum e uma imigração ponderada (aqui). O centro direita parece estar a começar a compreender um problema que a esquerda ainda não entendeu. Trata-se de que a política visa, em primeiro lugar, assegurar a persistência no tempo de uma comunidade soberana. O impulso político não é, primeiramente, um impulso moral, mas digamos um impulso ontológico, ou na linguagem política dos dias de hoje um impulso existencial.

A esquerda continua afectada pela influência antipolítica do pensamento marxiano. O Estado e a política eram vistos como o resultado de um conflito de interesses insanável - a luta de classes - e o objectivo seria liquidar, a médio prazo, o próprio Estado, que é considerado a estrutura de dominação de uma classe sobre outra. Esta visão, proveniente do século XIX, lançou uma sombra até aos nossos dias, onde a política, para além da gestão do conflito entre classes, retornou em força. E retornou centrada naquilo a que podemos chamar a sua essência: assegurar, como se disse, a persistência no tempo de uma comunidade soberana.

Há duas coisas que parecem estar a atormentar parte substancial dos eleitorados europeus e que estão ligadas entre si e se conectam com a essência da política. Isso tem sido explorado, não sem êxito, pelas extremas direitas e pelas direitas radicais, através da questão da identidade das comunidades políticas e da sua soberania. A baixa natalidade de muitos povos europeus e a presença de fortes contingentes de imigrantes conduzem a uma percepção de que a comunidade soberana que a política deveria defender está em perigo. Em perigo porque não se reproduz o suficiente e em perigo porque está a ser infiltrada por culturas diferentes e que são sentidas como incompatíveis com a cultura original, digamos assim, dos povos que acolhem essa imigração.

Quando se trata de política não é relevante se as percepções são verdadeiras ou são falsas. O importante é o grau de disseminação dessas percepções na comunidade e, por isso, no eleitorado. O que a generalidade dos partidos democráticos tem feito é contrapor a esta questão eminentemente política respostas de ordem moral, as quais se manifestam em acusações de racismo e de xenofobia. O problema é que estas acusações não têm poder de penetrar no eleitorado e alterar o seu sentido de voto. Pelo contrário, estão a entregar os eleitores à radicalidade da direita racista e xenófoba. É altura de os partidos democráticos olharem para o problema de frente, perceberem que a política não trata apenas, nem essencialmente, da questão da distribuição dos rendimentos, e perceber por que razões o radicalismo de direita está a incendiar os eleitorados até há poucos anos tão moderados.

sábado, 27 de abril de 2024

Deixar a História aos historiadores

A pior coisa que se pode fazer é trazer a história para a política, pois o que chega nunca é a História, enquanto visão do passado fundada na investigação racional, mas a colecção de mitos que visam incendiar imaginações e atear os ânimos, uma invenção retórica para efeitos conflituais. A história no discurso político é, por norma, a anunciação do advento da barbaridade, da divisão entre amigos e inimigos e o que daí vem. 

sexta-feira, 26 de abril de 2024

Um Presidente à beira do abismo

Marcelo Rebelo de Sousa tornou-se um problema para as instituições. Ele que deveria ser o seu garante parece apostado em dinamitá-las. As suas palavras no jantar com os jornalistas estrangeiros são um exemplo disso. Se as considerações sobre os primeiros-ministros não passam de um fait-divers inócuo, apesar de desagradável, as meditações sobre o passado colonial a que se entregou em voz alta foram de grande gravidade. Não porque representem um traição, mas porque assuntos de grande delicadeza política não são tratados na praça pública. Marcelo Rebelo de Sousa não sabia que estava a dar combustível à retórica pseudo-patriótica da extrema-direita? Um Presidente à beira do abismo.

quarta-feira, 24 de abril de 2024

A cultura populista em Portugal

O populismo parece disseminado por eleitores de todo o espectro partidário. É o que mostra o projecto de investigação 50 anos de Democracia em Portugal: Aspirações e Práticas Democráticas - Continuidades e Mudanças Geracionais, do ISCSP/CAPP (aqui e aqui). Generalizou-se uma percepção da realidade política extremamente perigosa. Essa percepção conduz a atitudes de rejeição do sistema político e a um antielitismo feroz, duas atitudes cavalgadas pela extrema-direita. Nessa rejeição, manifesta-se uma velha cultura que teve o seu fundamento na Estado Novo, mas que, depois da abalada pela transição à democracia, foi, paulatinamente reganhando fôlego. 

Quase 87% dos portugueses pensam que os políticos e os partidos defendem os seus privilégios. Cerca de 82% julga que os políticos são desonestos e corruptos e mais de 81% afirmam que os partidos falam muito, mas fazem muito pouco. Se quisermos falar de uma vitória póstuma do salazarismo, estas percepções sobre os partidos político e os políticos democráticos são um prova elucidativa. É uma visão negra dos instrumentos democráticos. Além de negra, ela é falsa e esta falsificação resulta de vários factores. 

Em primeiro lugar, provém de uma generalização abusiva em que se passa de casos específicos para uma generalização alimentada pelo furor da comunicação social. Em segundo lugar, origina-se numa inveja perante aqueles que ocupam os cargos de poder e são pessoas iguais a todas as outras, pessoas que não têm uma aura de sacralidade que as retira dos olhares públicos, como acontecia com os políticos da ditadura, protegidos pela censura e pela polícia política. Em terceiro lugar, pela cultura antidemocrática e antipartidária proveniente, como se disse, do Estado Novo e fomentada por aqueles que nunca se resignaram à liberdade.

Contudo os dados mais preocupantes são dados por dois elementos do estudo. Quase 85% dos portugueses acham que os políticos devem seguir o povo e quase 70% defendem que as decisões importantes deveriam ser tomadas por cidadãos (através de referendos). A cerne da democracia liberal é a representatividade. E ela é representativa não apenas por uma questão prática da impossibilidade de envolver todos os cidadãos na trabalho legislativo e executivo, mas, fundamentalmente, para evitar que a irracionalidade emotiva e a exploração demagógica arrastem a comunidade para a tomada de posições irracionais e odiosas.

As democracias liberais são demo-aristocracias, nas quais as elites políticas (a aristocracia das democracias modernas) são abertas, podendo qualquer um fazer carreira política. Qualquer um fazer parte das elites políticas, segundo o seu talento, é um dos traços democráticos do sistema. O outro é a escolha das elites governativas. Esta depende do voto popular. As democracias liberais existem não apenas para evitar o conflito armado entre elites rivais, mas também para evitar que os políticos sigam o povo, quando este é movido pelos instintos cegos e por paixões irracionais. Que os portugueses não o entendam é um dado muito preocupante.

terça-feira, 23 de abril de 2024

O caso Sebastião Bugalho

É possível que Sebastião Bugalho venha a ser um talentoso político e um futuro líder da direita democrática. É possível que tenha capacidade de penetrar no eleitorado de direita que, nos últimos tempos, se tem inclinado para o Chega. São possibilidades que o futuro poderá ou não confirmar, mas há uma coisa que é clara. Sebastião Bugalho fez até agora parte de uma rede de comentadores - em aparência independentes - que construíram uma narrativa da realidade nada independente. Pelo contrário, uma narrativa enviesada com o único foco de fazer a direita chegar ao poder. Se fosse preciso apresentar provas, a cooptação de Sebastião Bugalho para cabeça de lista da AD para as eleições europeias bastava. O caso Sebastião Bugalho é um sintoma do enviesamento da comunicação social portuguesa que está a perverter o jogo democrático.

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Política, percepções e factos

A política, muitas vezes, faz-se mais de percepções do que de factos. Uma das percepções que a direita tem passado e com um sucesso razoável é a incapacidade de Portugal crescer. As direitas radicais propagam que Portugal é mesmo um país em retrocesso com o 25 de Abril. O que mostram os factos? Segundo o Maddison Project, que reúne informação de longo prazo até 2018, Portugal foi o quatro país em que os rendimentos médios, na Europa Ocidental, mais cresceram desde 1974. Também os dados do World Economic Outlook do FMI, com informação do PIB per capita em paridades de poder de compra, desde 1980 até ao presente, mostram que Portugal está entre os cinco países que mais cresceram nesse período (ver aqui). Os factos estão longe das narrativas que as direitas, de modo diferenciado, põem a circular. Ora do ponto de vista político, é mais importante a percepção do que os factos. Mesmo que a nossa economia seja das que tem, desde 1974, um dos melhores desempenhos na Europa Ocidental, não é isso que está na mente de muitas pessoas, senão da maioria. Os resultados das últimas eleições mostraram, se fosse necessário mostrar, que as percepções em política tem mais impacto eleitoral do que os factos.